Por Bibiana Alcântara Garrido*
Três anos depois, 61% da área de floresta queimada no Dia do Fogo virou pastagem em São Félix do Xingu, Altamira e Novo Progresso, no Pará. Mas nem tudo o que queimou virou espaço para o gado: 37,4% da área de floresta afetada permanece floresta, só que agora degradada.
Os municípios estão entre os que mais queimaram florestas na ação criminosa do Dia do Fogo, quando grupos de ruralistas no WhatsApp combinaram de botar fogo na Amazônia a partir das margens da BR-163 em 10 de agosto de 2019.
Localizado a mais de 1,6 mil quilômetros do epicentro Novo Progresso, Porto Velho (RO) é o terceiro na lista, seguida pela quase vizinho, Lábrea (AM):
Dos dez municípios que mais queimaram a floresta no episódio, Lábrea registrou a maior conversão para pastagem: 91,53% da área que pegou fogo na cidade em 2019 virou pasto. A menor conversão foi registrada em Arame (MA), com 10,62% da área queimada transformada em pasto; outros 89% viraram floresta degradada.
Em São Félix do Xingu, 48,7% da área queimada virou pasto e 49,8% seguiu floresta degradada; em Altamira, 75,44% da área foi convertida em pasto e 23,13% agora é floresta degradada; em Novo Progresso, 67,15% virou pasto e 31,37% floresta degradada.
A análise é de pesquisadores no IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), com dados do Monitor do Fogo, mapeamento mensal de cicatrizes de fogo no país, e do mapeamento anual de uso e cobertura do solo MapBiomas Brasil.
Os resultados estão disponíveis em um painel interativo. É possível selecionar a exibição para estados, municípios, terras indígenas e unidades de conservação.
Boca do Acre
O município de Boca do Acre (AM), localizado a 2,3 mil quilômetros de Novo Progresso e a pouco mais de 200 quilômetros da capital acreana Rio Branco, é o mais distante entre os vinte com maior área de floresta queimada. Se seguir a lista, as cidades Feijó e Sena Madureira, já no estado do Acre, também aparecem.
Embora a ação criminosa do Dia do Fogo tenha se concentrado nos estados Pará e Mato Grosso, outros quatro estados da Amazônia Legal registraram incêndios de grande proporção: Amazonas, Rondônia, Acre e Maranhão.
“O fato desses incêndios terem chegado tão longe, a partir de um crime coordenado por grupos de Novo Progresso, só mostra que as pessoas que colocaram fogo na floresta estavam articuladas em maior parte da Amazônia brasileira, especialmente nos estados com alta concentração de terras indígenas e áreas protegidas”, comenta Ane Alencar, diretora de Ciência no IPAM.
Dos seis estados que mais queimaram a floresta amazônica na ocasião, o Amazonas foi o com maior conversão: 76,71% da floresta queimada virou pasto, enquanto 21,69% seguiu floresta degradada.
O Maranhão foi o estado que menos alterou a área de floresta queimada: 24,17% virou pasto e 74,9% floresta degradada.
Fogo pelo fogo
Em todos os estados da Amazônia Legal foram mais de 11,5 mil km² de floresta queimados com o Dia do Fogo. Desses, cerca de 6 mil km² (52,3%) viraram pasto; outros 46,6% deram lugar a uma floresta degradada. A parcela chama a atenção de pesquisadores.
“Normalmente, o comportamento observado depois da queima é a alteração no uso do solo, seja com conversão para pastagem ou agricultura, por exemplo. Mas vemos que as áreas de floresta queimada no Dia do Fogo não tiveram esse mesmo destino, ou pelo menos ainda não. Até agora, as imagens nos mostram que boa parte das áreas de floresta foram queimadas ‘por queimar’, sem necessariamente ter uso na sequência, mesmo que de maneira ilegal”, explica Felipe Martenexen, pesquisador no IPAM que conduziu a análise.
Traços de ilegalidade na ação ficam mais evidentes com os dados de floresta queimada em terras indígenas e unidades de conservação.
Se fosse uma cidade, Urubu Branco assumiria o lugar de Porto Velho com a terceira maior área de floresta queimada. A terra indígena habitada pelo povo Tapirapé, na região nordeste do estado de Mato Grosso, fica próxima ao Parque Indígena do Xingu. Esse, habitado por 16 povos, tem a segunda maior área de floresta queimada em terras indígenas.
A APA (Área de Proteção Ambiental) Triunfo do Xingu também passaria Porto Velho: unidade de conservação com maior área de floresta queimada, fica nos municípios de São Félix do Xingu e Altamira.
O que fica das chamas
“A saúde é o maior impacto que a gente vê. Os olhos ardem muito, principalmente em crianças e idosos. Ficam doentes. A fumaça penetra nas nossas casas e fica muito quente, difícil para a gente dormir. Não dá para coletar frutas e alimentos, porque foram todos queimados. Como os animais vão para longe do fogo, também fica difícil caçar. O jabuti é um que desapareceu da nossa região, antigamente tinha bastante. Até as aves sumiram”, conta Paroo’i Tapirapé, cacique da aldeia Myryxitãwa, uma das oito na terra indígena Urubu Branco.
Depois de 2015, lembra Paroo’i, a nascente de um afluente do rio Tapirapé começou a secar todo ano. “Essa água nunca tinha secado, mas agora a gente está acompanhando diretamente. A cada ano aumenta o efeito do fogo, é muito destruidor. Quanto mais queimado, mais seca”, relata.
“Outro impacto forte é na questão cultural: não achamos mais folhas de banana brava, de bacaba, além de madeiras específicas que usamos na construção da Takãra, a casa cerimonial Apyãwa. Na nossa terra, o telhado da casa das pessoas é feito com folhas de coco. Se queimar tudo, não vamos ter mais casas novas”, acrescenta.
As oito aldeias organizam ações de prevenção e de combate aos incêndios que entram no território. Grupos com formação pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e com apoio do Corpo de Bombeiros atuam na terra indígena. Na escola, com sede na aldeia principal Tapi’itãwa e com salas nas demais, mais de 300 crianças e adolescentes aprendem sobre a relação fogo-natureza.
O norte da terra indígena concentra as áreas atingidas pelo fogo, o que pode indicar a presença de invasões e grilagem. Como os incêndios costumam se aproximar das aldeias por essa região, a comunidade quer instituir brigadas indígenas para o controle.
“A gente tenta combater o incêndio longe, mas é muito difícil. Enquanto não chove, o fogo continua até chegar na aldeia. As comunidades vizinhas, e até mesmo os fazendeiros, também têm que fazer sua parte. Se a gente fizer a nossa, mas eles não, não vai adiantar nada. Todos nós somos responsáveis”, diz o cacique.
Mais dias queimaram
Dias com ainda mais fogo na Amazônia brasileira ocorreram depois de 2019. Se naquele ano os focos de calor foram 30,9 mil em agosto e 19,9 mil em setembro, de acordo com dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), 2020 e 2021 mantiveram o mesmo patamar ‒ em alguns casos, até superaram. Mas 2022 foi mais longe.
Em 2022, os focos de calor passaram de 33 mil em agosto e de 41 mil em setembro, mais que o dobro do mesmo mês de 2019. A fumaça que permeia o dia a dia de populações amazônidas chegou de novo ao Sudeste brasileiro e a países como Bolívia e Peru. Foi o maior registro de focos no bioma desde setembro de 2007.
A explicação pode estar no calendário da política institucional. Cientistas avaliam que a ocorrência de fogo e desmatamento costuma aumentar em anos de eleição, como foi 2022. O desvio das atenções do poder público levaria a um esmorecimento na fiscalização, abrindo caminho para crimes ambientais.
São Félix do Xingu e Altamira mantêm, nessa ordem, a maior área de floresta queimada em 2019 e 2022, entre agosto e outubro . Das dez cidades que mais queimaram em 2019, também repetiram o feito no mesmo período do ano passado: Porto Velho, Lábrea, Apuí (AM), Novo Progresso e Colniza (MT). Marcelândia, Peixoto de Azevedo e União do Sul, municípios de Mato Grosso, são novidades na lista.
Prevenção e recuperação
A presença de fogo na Amazônia está diretamente relacionada à interferência humana. Não há fogo na floresta sem manejo agropecuário ou desmatamento. No primeiro caso, a aplicação de fogo na tentativa de “limpar” uma área pode sair do controle e criar um incêndio florestal; no segundo, o fogo integra uma etapa do processo de desmate.
Segundo o MapBiomas Fogo, 19% da Amazônia brasileira queimou ao menos uma vez de 1985 a 2022. São mais de 809 mil km², uma área maior que o estado de Minas Gerais. Cerca de 68% desse total queimou mais de uma vez. E se tem lugar, também tem hora: 75% dos incêndios ocorrem entre agosto e novembro, durante a “temporada do fogo”, marcada pela estação seca em maior parte do bioma.
A aplicação de estratégias do MIF (Manejo Integrado do Fogo) pode reduzir o risco de alastramento de incêndios, aliada ao controle do uso do fogo. Na Amazônia, o MIF contempla o mapeamento da vegetação e de áreas de risco, a formação de brigadas locais e a criação de barreiras à passagem do fogo, os aceiros.
Medidas de controle do desmatamento e da degradação florestal também se refletem na redução dos incêndios, já que o fogo é um dos principais componentes desses processos. A primeira fase do PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), por exemplo, reduziu em 46% a área queimada entre 2004 e 2012.
“O processo de recuperação de florestas degradadas é lento, e o problema é que quanto mais degradada, maior a probabilidade de novos distúrbios ocorrerem, o que torna a recuperação ainda mais difícil. Para evitar esse risco, o primeiro passo para se recuperar uma floresta é justamente protegê-la, evitando que novos distúrbios aconteçam”, indica Alencar, também coordenadora da rede MapBiomas Fogo.
Como fizemos
A análise desenvolvida para esta reportagem utilizou dados do Monitor do Fogo para área queimada mensal, e do MapBiomas Brasil (Coleção 7.1) para cobertura e uso do solo ‒ esse mapeamento é o mais recente disponível e vai até o ano de 2021, portanto, não engloba mudanças que possam ter ocorrido em 2022. Para fins de comparação com a cobertura de floresta antes do Dia do Fogo, foram utilizadas imagens de satélite de 2018.
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Esta reportagem é resultado de uma parceria exclusiva entre o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e a InfoAmazonia, publicada especialmente no projeto PlenaMata.
*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br