Anna Júlia Lopes*
Áreas equivalentes a duas vezes o Estado de São Paulo seguem sem uso definido na Amazônia Legal. São as FPNDs (Florestas Públicas Não Destinadas), que somam 56 milhões de hectares e, segundo o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), concentram 36,5% do desmatamento na Amazônia em 2023.
De acordo com estudos do IPAM na região, a crescente ocupação ilegal das FPNDs é hoje um dos maiores motores do desmatamento na Amazônia. Ao completar 30 anos, o Instituto destaca que a destinação dessas áreas – prevista por lei para conservação ou uso sustentável – é uma das principais frentes para conter a destruição da floresta.
O Observatório das Florestas Públicas, lançado em 2024 por uma parceria do IPAM com o Movimento Amazônia de Pé, acompanha o processo de destinação dessas florestas para dar transparência e destaque à proteção socioambiental.
Para o pesquisador sênior e um dos cofundadores do IPAM, Paulo Moutinho, a iniciativa é uma “consequência” de trabalhos realizados pelo Instituto desde 2011. Moutinho explica que, à época, o IPAM começava a monitorar as FPNDs a partir de um estudo realizado em conjunto com o Serviço Florestal Brasileiro. Com o relatório, os pesquisadores do Instituto observaram que boa parte do desmatamento na região era relativo àquele que ocorria nas florestas que aguardavam pela destinação para uma categoria fundiária.
“A gente começou a tentar entender o porquê dessa proporção – que era por volta de 15% ou 16%, de 2005 até 2015, de todo o desmatamento da Amazônia. Passamos a observar essa dinâmica, que era crescente: a cada ano que passava, a proporção de desmatamento em Florestas Públicas Não Destinadas começava a aumentar. Nos últimos 7 anos, essa proporção aumentou assustadoramente: ela passou de 16% para 25%, e, depois, chegou a quase 30%”, afirma. O dado consta no estudo “Destinação de Florestas Públicas: Um meio de combate à grilagem e ao desmatamento ilegal na Amazônia”, lançado em fevereiro de 2022 e referente ao período de 2019 a 2021.
Ação da grilagem
Moutinho define o assunto das FPNDs como uma “caixa de Pandora”. De acordo com ele, o IPAM verificou como uma das principais ameaças para a proteção da floresta a ação da grilagem, ou seja, a tomada indevida da terra pública, na tentativa de “transformá-la em terra privada”.
O Instituto identificou o modus operandi nas atividades de grilagem para tomar os territórios que ainda não tinham destinação: por meio de registros fraudulentos no CAR (Cadastro Ambiental Rural) com um suposto documento de comprovação de propriedade. Depois disso, os grileiros passam a desmatar a floresta e, por fim, vendem a terra desmatada para outros fins.
“A gente descobriu para onde iam essas florestas: a maior parte virava pasto. Isso estava dentro de um processo de tentativa de privatização – mesmo que fosse um processo ilegal envolvendo essas terras públicas”, explica o pesquisador.
O CAR é um documento autodeclaratório. Com ele, o proprietário indica a extensão do território e, a partir disso, recebe um cadastro provisório acerca do local. Por último, cabe aos governos federal e estaduais, por meio de equipe técnicas, validarem o cadastro.
Segundo a cartilha “Por uma Amazônia livre de grilagem”, desenvolvida pelo projeto Amazoniar, o processo de validação é lento e é isso que permite o uso indevido do CAR pelos grileiros, em uma tentativa de legitimar a posse de terras públicas. O documento explica que, sem a validação, o cadastro passa a ser usado como um instrumento fundiário, sendo aceito por compradores de terras e até bancos como comprovantes de propriedade.
Pesquisas do IPAM mostram que, até o fim de 2020, mais de 18 milhões de hectares de FPNDs estavam declaradas ilegalmente no Sistema de Cadastro Ambiental Rural como propriedades particulares.
Moutinho explica que a alta da ação da grilagem nas florestas públicas sem destinação é impulsionada pela percepção de que são “terras de ninguém”. A ausência de destinação oficial torna essas florestas mais suscetíveis à devastação, mesmo sendo patrimônio público da União ou dos Estados.
“Se é ‘terra de ninguém’, alguém vai querer ser o dono. Então, há essa invasão das terras na tentativa de especulação imobiliária: eu entro lá, derrubo a floresta, coloco o gado e, depois disso, tento vender essa floresta como privada para um desavisado ou para alguém que tenha o interesse de legalizar essa área de alguma forma. A grande questão é que, por não terem gado ou plantação, as pessoas acham que são terras abandonadas”, acrescenta.
Entraves na destinação
Com o desmatamento ilegal sendo um dos maiores desafios na região, a destinação das florestas públicas é uma das principais medidas para a proteção da Amazônia, destaca a cartilha “Soluções para o desmatamento na Amazônia”. No entanto, há uma série de entraves no processo de destinação.
Na avaliação do Instituto, a mais importante das barreiras é a política. “Não há uma vontade política para fazer essa destinação, principalmente dentro dos Estados, porque aquilo é visto como um ativo para mineração, exportação de petróleo, soja ou gado, ou seja, para ser produtivo”, diz Moutinho. Ele explica que isso ocorre porque o extrativismo tradicional comunitário e o Pagamento por Serviços Ambientais ainda não está “estruturado o suficiente” para que os governos consigam obter uma parcela do lucro que resulta dessas atividades.
Além disso, há a morosidade nas destinações. O processo é geralmente realizado por uma equipe técnica. No caso do governo federal, o grupo chamado de “Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais” é composto por integrantes de diferentes ministérios, como o do Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos Povos Indígenas, e órgãos federais, como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Dentro da Câmara, o trabalho é feito especificamente pelo Grupo de Trabalho para a Destinação de Florestas Públicas Federais. Quanto ao âmbito estadual, atualmente, o Estado do Pará é o único que tem uma equipe para discutir as destinações.
Cabe aos grupos formados pelos governos federal e estaduais identificar as áreas públicas e determinar quais delas interessam a cada um dos órgãos que compõem a equipe estabelecida. Posteriormente, os integrantes iniciam um estudo de viabilidade do território – o que, comenta Moutinho, é um processo demorado.
Possíveis destinações
Como é determinado pela Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284/06), as Florestas Públicas Não Destinadas devem ser voltadas para conservação ou uso sustentável de seus recursos. Alguns exemplos de destinação previstos são:
- Território Indígena;
- Unidade de Conservação;
- Território Quilombola;
- Assentamento; e
- Concessão Florestal.
Cada uma dessas categorias têm políticas públicas específicas relacionadas. No caso das concessões florestais, podem também beneficiar o setor privado, pois esse tipo de destinação prevê que empresas privadas façam o manejo florestal da área de forma sustentável, com atividades de extração de madeira ou turismo, por exemplo.
Contudo, esse tipo de prática só pode ser realizada se não houver indícios de ocupação de povos e comunidades tradicionais na região. No processo de destinação, a prioridade é das populações tradicionais, caso residam no local.
O fator clima nas Florestas Públicas Não Destinadas
Moutinho define a discussão sobre as Florestas Públicas Não Destinadas como uma das mais importantes do IPAM: “Sem essas florestas, a gente cria um país e um planeta diferentes do que são hoje”. A fala do cientista faz referência ao grande volume de carbono armazenado pela floresta – o que, segundo ele, dado o seu tamanho, tem efeito global.
O armazenamento ou sequestro de carbono é um processo que remove o dióxido de carbono da atmosfera, evitando que contribua com o efeito estufa e o aquecimento global. Pelo fato de as FPNDs representarem cerca de 7,4% do território nacional (do total das áreas de florestas públicas sem destinação, 89% estão na Amazônia), Moutinho explica que essas áreas funcionam como um “grande ar-condicionado” do planeta, por regularem o clima.
“Se você simplesmente retira a vegetação e põe pasto, você desliga o ar-condicionado do planeta. Sem a floresta, haveria um aumento de quase 10º C da temperatura global”, diz. Um efeito prático dessa elevação no dia a dia amazônico, diz o pesquisador, seria uma temperatura de 55°C em um dia comum, o que dificultaria condições de habitabilidade.
Além dos efeitos no aquecimento global, o desmatamento das FPNDs também afetaria o agronegócio da América do Sul. Cerca de 95% do agronegócio brasileiro não tem sistema de irrigação, ou seja, depende da chuva. Por esse motivo, a floresta amazônica é considerada o “regador” da atividade no país.
Chamada de “mar verde” por cientistas, a Amazônia é responsável por lançar vapores de água para a atmosfera, processo semelhante ao que acontece com os oceanos. Essa umidade é levada para diversos pontos: parte da própria Amazônia, a região Centro-Oeste e até a Bacia do Prata, beneficiando Argentina e Uruguai.
“É um sistema gigante de irrigação, de larga escala. Se você perde essa função, você deixa de irrigar uma área monstruosa”, explica Moutinho. O desmatamento na floresta diminui a capacidade da floresta de transportar essa água para irrigar o resto do continente
A falta de destinação das FPNDs compromete não apenas a integridade da Amazônia, mas também a estabilidade climática e econômica de todo o planeta. Para o IPAM, transformar essas áreas em territórios protegidos ou produtivos de forma sustentável é uma urgência ambiental, climática e social.
A preocupação com o impacto climático do desmatamento na Amazônia motivou o IPAM a atuar em parceria com o MPF (Ministério Público Federal) e com a Abrampa (Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente). Tanto o MPF quanto a Abrampa trabalham em conjunto com o Instituto no no Amazônia Destinada, iniciativa de múltiplas instituições que visa apoiar o governo brasileiro no cumprimento da meta do fim do desmatamento até 2030 e na destinação de áreas de Florestas Públicas Não Destinadas.
Segundo Moutinho, o IPAM colaborou no desenvolvimento de uma metodologia para calcular o dano climático causado pela derrubada ilegal de florestas públicas. A calculadora de carbono desenvolvida pelo Instituto passou a ser utilizada em ações judiciais para estimar o volume de emissões de gases de efeito estufa e o prejuízo econômico associado ao desmatamento, com base em parâmetros de monetização de créditos de carbono utilizados no Fundo Amazônia. Em 2024, uma ação civil pública movida pelo MPF no Amazonas aplicou a ferramenta para calcular em R$ 44,7 milhões dano climático gerado pela derrubada de mais de 2 mil hectares no município de Boca do Acre.
“É a primeira vez que uma ação denuncia ao Judiciário que há um dano climático envolvido no desmatamento ilegal de terra pública”, afirma Moutinho. A metodologia foi reconhecida pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e incorporada a um protocolo para orientar decisões judiciais sobre crimes ambientais. O objetivo do IPAM e do Ministério Público é fazer com que órgãos do Poder Judiciário de outros países também adotem sistemas semelhantes.
Para Moutinho, o país vive uma “janela de oportunidade” até 2026 para avançar nesse processo. Com vistas a este futuro, o IPAM deve concentrar esforços para apoiar também o governo federal na destinação de milhões de hectares, exatamente pelos benefícios que essas florestas trazem para o clima, o abastecimento de água e o agronegócio. “Daí para frente, o trabalho não termina”, conclui.
*Jornalista do IPAM, anna.rodrigues@ipam.org.br