Anna Júlia Lopes*
Lançado em 2023, durante a COP28, o GALO (Global Assessment from Local Observations, ou Avaliação global a partir de observações locais, em português) já apresenta resultados que mostram a importância das florestas para a continuidade das produções agrícolas. Em entrevista à Um Grau e Meio, o pesquisador André Andrade, que atua diretamente no projeto, menciona os principais avanços e explica como iniciativas semelhantes serão cada vez mais necessárias nos próximos anos.
Biólogo, Andrade é pesquisador do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) desde 2022 e é doutor em Ecologia e Evolução pela UFG (Universidade Federal de Goiás). Tem experiência com análise de dados e modelagem estatística com foco em áreas climáticas e biodiversidade.
O GALO foi lançado em 2023, durante a COP28, para investigar a relação entre agricultura e preservação de vegetação natural dentro da Amazônia e do Cerrado, entender o impacto em relação às condições climáticas locais e a conexão destes fatores com a estabilidade da produção agrícola. Até o momento, às vésperas da COP30, a iniciativa obteve avanços em relação à pesquisa? Quais são os principais?
Desde que o GALO foi lançado, nós conseguimos ter alguns resultados bem interessantes. Eu acho que um dos principais é a importância da floresta em pé. O que a gente tem visto é que ter floresta no entorno da propriedade agrícola é extremamente benéfico para a produtividade. Ter florestas no entorno aumenta os serviços ecossistêmicos que a biodiversidade presta, como a polinização e o controle de pragas, por aumentar a diversidade de diversos grupos que a gente encontra nesses fragmentos, como: besouros, abelhas, formigas, aves. Há também um efeito de microclima, em que a gente consegue ter uma temperatura de superfície menor, com maior ciclagem de água, maior evapotranspiração. O GALO tem avançado bastante nesses eixos e acho que a mensagem principal é que a floresta em pé é essencial para a agricultura.
O projeto chegou a alguma conclusão sobre a relação entre clima e safra? Qual?
O projeto chegou, sim, a algumas conclusões quanto à relação entre clima e safra. Nós ainda estamos melhorando os nossos modelos e uma das iniciativas que a gente lançou agora foi justamente a Calculadora de Risco Climático, para tentar refinar ainda mais esses modelos, desenvolvida, principalmente, pela pesquisadora Bianca Rebelatto, do IPAM. O que ela tem encontrado é que existe uma série de fatores ambientais que afetam a produtividade. Um dos principais é o VPD (sigla em inglês para Déficit de Pressão de Vapor), que está relacionado à aridez do ar. Quando o VPD está muito alto, ou seja, com um ar mais árido e seco, nos primeiros estágios de plantio, a produtividade é afetada no final da safra, porque a soja — que é o que nós temos estudado — não consegue crescer. Aliado a isso, Rebelatto também tem encontrado um efeito negativo do número de dias sem chuva, que é essa extensão do período de estiagem. Quando começa a chover mais tarde, isso também acaba tendo um efeito muito negativo para a produtividade da soja. Esses foram os principais resultados, que foram identificados a partir de uma base de dados que alguns produtores do Matopiba compartilharam com a gente. Esses resultados avançam bastante no que já havia sido observado pela Ludmila Rattis, pesquisadora do IPAM e coordenadora do GALO, em 2021. Nós temos encontrado essa queda de produtividade e, se nós retornamos nos resultados de 2021, encontramos uma desintensificação, ou seja, o aumento dessa aridez do ar e o aumento do período de estiagem diminui a produtividade. A queda afeta a possibilidade de os produtores do país terem uma safra e uma safrinha, que é esse calendário agrícola duplo extremamente forte para a agricultura e para a economia brasileira. Isso também está em risco por causa das condições climáticas, porque a nossa agricultura é principalmente de sequeiro, então, é extremamente dependente de condições climáticas estáveis e previsíveis.
Se o clima afeta a produção agrícola, por que estamos com safra recorde nos últimos anos mesmo com um alto nível de desmatamento?
Então, estamos e não estamos. A gente está tendo uma safra recorde agora, em 2024/2025, e muito por conta de as condições climáticas estarem muito boas, porque a gente está em um ano de La Niña. É um La Niña fraco, então, está sendo muito benéfico, com chuvas bem reguladas. Além disso, nós estamos tendo essa safra recorde porque houve a expansão da área plantada. Houve um aumento de 1,7 milhão de hectares em relação à área plantada da safra passada, então, quando se planta mais, é esperado que se colha mais.
Na safra passada, de 2023/2024, a gente teve uma quebra de safra fortíssima. Nós tivemos perdas muito fortes. Principalmente por conta das condições climáticas atreladas ao El Niño. A gente teve um prolongamento desse período de seca, choveu menos em algumas regiões e muito em outras. Nós tivemos uma safra recorde esse ano, mas o ano passado foi um desastre, foi uma safra muito ruim mesmo.
Além disso, muito do que se consegue manter de safra recorde é atrelado a um manejo bem intensivo. Os produtores conseguem manter safras muito altas de soja na região do Oeste da Bahia, por exemplo. No entanto, é uma região que depende extremamente da irrigação, da cultura irrigada. A gente consegue manter uma produtividade lá em cima, mas tem que pensar o quão longevo isso de fato é, porque nós conseguimos nos proteger um pouco das condições climáticas com o manejo. Se a área é irrigada, se tem um manejo de aplicação de defensivos, fertilizantes, químicos, a gente consegue corrigir muitas das deficiências do solo, consegue controlar a oferta de água, mas o quão longeva e sustentável é essa agricultura? Essa é uma coisa que nós temos que pensar também. Essas agriculturas que têm um manejo muito intensivo, principalmente ligadas à irrigação, não é um tipo de sistema que conseguimos fazer em larga escala por um período muito grande.
Quais têm sido os principais desafios da pesquisa durante esse processo?
O GALO é um projeto grande e ambicioso em relação ao que se propõe a entender e estudar. O projeto propõe a entender os efeitos e as conexões entre quatro eixos principais, que são: o carbono, a água, a biodiversidade e o clima — e como as diferentes agriculturas afetam esses eixos. E ainda há dois eixos transversais, que é a questão da regeneração, como a regeneração pode ser uma aliada; e também o eixo econômico, que é tentar trazer um pouco de valor econômico para as questões estudadas no GALO. Para mim, o maior desafio está sendo contar toda essa história, a história dessas conexões, mas é um desafio muito legal. Eu sou biólogo, eu conheço um pouquinho de biodiversidade e um pouquinho do clima, mas eu não conhecia muito sobre água, ciclos de água e carbono. A gente vai aprendendo muito com as pessoas com quem trabalha e vai criando essas conexões com os nossos eixos. É uma troca muito legal mesmo. Para mim, a grande dificuldade tem sido conseguir assimilar isso tudo, mas eu acho que está funcionando. Eu acho que o GALO está caminhando e que a gente vai ter alguns resultados bem legais em 2025 em praticamente todos os eixos.
Vocês têm percebido abertura por parte do setor agrícola para os dados e diagnósticos que o GALO tem produzido? Como tem sido esse diálogo com produtores rurais e representantes do agro?
Eu vejo uma abertura bem legal e bem interessante. Alguns produtores já compartilharam alguns dados com a gente e pediram para fazer algumas análises para eles. Eu percebo uma abertura muito boa dos produtores agrícolas em geral. Eu vejo um interesse que eu acredito ser muito genuíno da parte deles. Nesse ponto, eu acho que a gente está conseguindo expandir e crescer em um setor que antes era difícil de dialogar. Essa questão de a gente estar ali no campo, aprendendo e valorizando o dia a dia deles e discutindo junto. A ideia do GALO é justamente uma construção colaborativa, por isso, nós temos uma recepção muito boa por parte do setor agrícola.
Como vocês veem a contribuição desses dados para a construção de políticas públicas?
Foi justamente o foco do nosso último workshop, feito no final do ano passado. Nós reunimos pesquisadores do GALO, do Centro de Pesquisa Climática Woodwell, de universidades federais e outros institutos; representantes do setor agrícola, como fazendeiros; e pessoas muito focadas em políticas públicas, tanto do IPAM quanto de fora. Foi uma grande troca e chuva de ideias sobre essa conexão do que a gente aprende na ciência com algumas políticas públicas, como o Plano Safra e algumas linhas de financiamento. No encontro, nós começamos a mapear um pouco em quais pontos a gente conseguiria auxiliar na discussão de políticas públicas. Ainda está em construção, claro, mas é muito possível. Nós estamos com alguns caminhos muito palpáveis de as pesquisas do GALO estarem auxiliando para pautar algumas políticas públicas.
Existiram outras pesquisas que tentaram encontrar essa relação da conservação com a produtividade agrícola? Se sim, no que o GALO se diferencia?
Sim, existem outras pesquisas que tentam buscar essa relação da conservação com a produtividade agrícola. Por exemplo, existe um grupo de estudos muito forte aqui no Brasil que estuda as relações de desmatamento com o clima. Pensando em biodiversidade, há também muitos estudos que relacionam a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, principalmente a polinização, com o aumento de produtividade. A gente tem alguns estudos para soja, algodão, tomate, café, pimentão. Há muitos estudos relacionados à conservação e os efeitos indiretos dessa conservação para a produtividade agrícola, mas o diferencial do GALO é avaliar tudo de uma forma integrada. Outro ponto é o fato de a pesquisa ser muito aliada e direta com o produtor agrícola. Eu acho que isso é essencial para mudar as coisas, nós estamos trabalhando com quem realmente está fazendo. Na universidade, muitas vezes, nós ficamos distantes dos atores locais ou dos órgãos políticos. Com o GALO, como a gente está trabalhando diretamente e em contato com os produtores, a gente tem um caminho mais robusto para influenciar políticas públicas e trazer conhecimento para criar uma agricultura mais sustentável. Nós estamos fazendo um pouquinho para melhorar o nosso sistema de produção de alimentos e eu acho que o caminho é realmente trabalhar junto com as pessoas que estão produzindo isso tudo.
O Brasil é uma potência agroambiental, e projetos como o GALO parecem apontar caminhos para equilibrar produtividade e conservação. Vocês acreditam que há potencial para que esse modelo seja replicado em outros países ou biomas?
Eu vejo que projetos como o GALO vão ser cada vez mais necessários. Primeiramente, nós estamos vendo que o clima em geral está mudando. Os anos estão cada vez mais quentes, batendo os recordes de calor, e nós estamos vendo um descompasso e uma falta de previsibilidade do ciclo de chuvas. Isso não é só no Brasil, e esse tipo de cultivo agrícola não acontece só no Brasil. O Brasil é, sim, uma potência agrícola porque consegue fazer uma safra e uma safrinha. Há investimentos tecnológicos e de manejo muito grandes. Mas o que a gente vê é que a conta, em alguns anos, está começando a não fechar. O produtor investe muito e, muitas vezes, vem um período de estiagem que ele não esperava ou as condições climáticas estão um pouco piores, ou vem uma praga muito forte.
Nós vemos que existem algumas fragilidades no modelo de produção e que nós conseguimos lidar com isso de uma forma mais econômica. A gente consegue criar um sistema mais sustentável e longevo, de uma forma mais natural, que é simplesmente aumentar a quantidade de florestas ao redor. Eu acho que cada vez mais a gente vai precisar encontrar soluções que são baseadas na natureza, porque elas são baratas, longevas e sustentáveis. Por mais que existam recursos tecnológicos e financeiros muito grandes, há um limite para tudo. Por exemplo, no ano passado, que foi o ano de El Niño em que foi registrada a quebra de safra, não teve manejo que conseguiu reduzir totalmente as perdas.
Em áreas com mais floresta no entorno, é possível criar condições climáticas mais amenas, mais agradáveis, e isso pode ser o diferencial. Essa demanda de conseguir lidar com o clima vai ser cada vez mais global e eu acho que cabe a nós pautar qual o tipo de desenvolvimento que queremos. A gente pode implementar sistemas de irrigação em larguíssima escala, isso vai dar um controle muito grande sobre a produção, mas, ao mesmo tempo, vai gerar diversos outros problemas, como crises de água, abaixamento dos rios e conflitos. Ou seja, são soluções que não são viáveis a longo prazo. Temos que pensar cada vez mais em um tipo de produção mais longeva, e isso é global. Não é só na nossa fronteira agrícola, que é a região onde o GALO trabalha. Isso vai ter em todos os países tropicais daqui para frente.
*Jornalista do IPAM, anna.rodrigues@ipam.org.br