Autores: Martha Fellows¹; Andrea Castanho²; Ane Alencar²; André Andrade¹; Michael Coe²; Marcia Macedo¹ ²; Patrícia Pinho¹, Ludmila Rattis¹ ²; Ariane Rodrigues¹; Bárbara Zimbres¹; Paulo Moutinho¹
¹Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)
²Woodwell Climate Research Center
Se o Brasil quiser ser uma potência climática, deve respeitar os direitos dos povos indígenas. Estudos recentes demonstraram que a eventual aprovação do Projeto de Lei n° 2903 de 2023 (PL 2903) e da tese do Marco Temporal¹ ameaça o futuro socioeconômico e ambiental do país. Ambas propostas resultariam na interrupção do já moroso processo de demarcação de Terras Indígenas (TIs) no país, e levariam à revisão daquelas já reconhecidas (Quadro 01), o que enfraquece os direitos legítimos e constitucionais desses povos. Se aprovadas, estimativas recentes indicam que, somente na Amazônia, poderá ocorrer um aumento expressivo do desmatamento da ordem de 23 a 55 milhões de hectares nos próximos anos (Alencar et al., 2023), em função do avanço da grilagem e da fronteira agrícola sobre as TIs. Como resultado desta destruição, entre 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono poderão ser emitidos para atmosfera (Alencar et al., 2023).
Projeto de Lei 2903/2023² | |
Propõe nova regulamentação para o art. 231 da Constituição Federal, sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de Terras Indígenas. Este PL sugere a inclusão de elementos que complexificam, retardam e, em última instância, extinguem o procedimento de demarcação de Terras Indígenas, como a tese do Marco Temporal. Mas não só: o texto retira o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, além de expor povos indígenas que vivem em isolamento voluntário a contatos sem seu consentimento, entre outros |
Tese do Marco Temporal³ | |
O referido recurso extraordinário em julgamento no STF mira a tese do Marco Temporal, que restringe o direito à terra aos povos que comprovarem estar em seus territórios no dia 5 de outubro de 1988. Esta ação foi movida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (FATMA), do estado de Santa Catarina, para retirada do povo Xokleng de parte da área da Terra Ibirama-la Klanõ. O argumento proposto ignora a teoria do indigenato, a qual prevê que povos indígenas têm direito original de usufruto dos territórios que tradicionalmente ocupam |
As consequências da aprovação do PL 2903 e o aceite da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), contudo, vão além do aumento da perda da vegetação nativa. Elas impactam vários serviços ecossistêmicos prestados por povos indígenas, por meio de seus usos tradicionais dos territórios. Nesta segunda Nota Técnica sobre o tema (veja aqui a primeira Nota Técnica sobre o Marco Temporal das Terras Indígenas), avaliamos os riscos da perda de tais serviços, com ênfase na região amazônica por esta abrigar a maior área de TIs demarcadas. Nesse sentido, calculamos (1) o volume do estoque de carbono florestal armazenado nas TIs, a partir do mapa de estoque de carbono do Quarto Inventário Nacional (Brasil 2021); e (2) sua relevância para a regulação do clima regional, observando o efeito da vegetação nativa na temperatura média e na evapotranspiração local e regional. Cabe ressaltar que foram consideradas nas análises todas as TIs que tiveram seu processo de homologação iniciado até o momento (RAISG, 2022; FUNAI, 2022). Os resultados dessas análises estão reportados nas seções a seguir.
Terras Indígenas: um armazém gigante de carbono
As análises indicaram que as TIs da Amazônia Legal compõem um armazém gigante de carbono que, se destruído, agravará a crise climática. São cerca de 55 bilhões de toneladas de carbono vivo nesses territórios ancestrais, ou o equivalente a 26 anos de emissões brutas do Brasil (SEEG, 2022)4. E é este estoque que está em risco. Caso o direito territorial indígena não seja respeitado, o avanço de atividades ilegais, como desmatamento, grilagem, exploração madeireira e garimpo pode acabar com o estoque de carbono nas Terras Indígenas. Consequentemente, o país subiria ainda mais para o topo na escala dos que mais contribuem para a emissão de gases de efeito estufa e para o agravamento da crise climática (Walker et al. 2020; Zimbres et al. 2021). Assim sendo, as metas brasileiras de redução de emissões5, ou o compromisso com desmatamento zero até 2030 na Amazônia, cairão por terra.
Terras Indígenas: o ar-condicionado do Brasil
A importância dos povos indígenas e de seus territórios para a regulação climática foi comprovada por estudos de abrangência internacional (IPCC 2021; FAO and FILAC 2021), regional (Walker et al. 2014; Crisóstomo et al. 2015; Schmidt et al. 2021) e local (Silvério et al. 2015). O Território Indígena do Xingu (TIX) é um exemplo visível. Dentro dos limites do TIX, a mata densa e pulsante apresenta uma temperatura média 5°C menor do que aquela registrada em sua vizinhança, onde a paisagem dominante são as pastagens e monoculturas (Figura 01). No restante da Amazônia Legal o efeito é semelhante. Onde há áreas indígenas a temperatura é 2°C mais baixa (29°C) do que a aquela registrada em áreas não protegidas (31°C, Figura 02).
Outro indicador que comprova o efeito de “ar-condicionado” é a evapotranspiração potencializada pela vegetação contida nas TIs amazônidas. As árvores funcionam como uma bomba d’água que traz a água do solo até o ar, devolvendo umidade para a atmosfera e reduzindo o calor. Esse ciclo constante é a base de formação de nuvens que vão regar os roçados indígenas e grandes áreas de cultivo agrícola que dependem das chuvas para sua produção. No caso do TIX, a evapotranspiração dentro do território é quase três vezes maior (1.261~1.440 mm) do que nas áreas desmatadas (360~540 mm). A média de evapotranspiração das áreas ancestralmente ocupadas pelos indígenas para a Amazônia Legal é 9% maior quando comparadas com as áreas não protegidas (Figura 02). A perda dos direitos territoriais, portanto, poderia reduzir drasticamente a umidade e as chuvas na região.
Figura 01. Os três mapas demonstram o efeito local da presença indígena na regulação do clima, com foco na área do TIX. (A) Uso e cobertura do solo: as áreas em tons de verde representam a vegetação nativa; em amarelo, pastagem; e rosa, agricultura. (B) Estimativa média anual do máximo de temperatura de superfície diurna em 1km de resolução. Na área do TIX a temperatura é mais amena (azul); fora das TIs, as temperaturas de superfície chegam a 35,1~40 °C (vermelho). (C) Média de evapotranspiração anual: a média para a área do TIX é de 1.261~1.440 mm (azul escuro) enquanto as áreas de pastagem e agricultura apresentam uma média de 360~540 mm (amarelo). As estatísticas foram obtidas com base nas médias anuais de 2004 a 2014 de produtos de sensoriamento remoto com 1km de resolução (MODIS – Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer) MYD11A1 (Wan et al., 2021) e MOD16A2 (Mu et al., 2014), respectivamente para temperatura de superfície e evapotranspiração.
Figura 02. (A) Estimativa média anual do máximo de temperatura de superfície diurna. As TIs apresentam, em média, 29°C; áreas não protegidas, cerca de 31°C. (B) Evapotranspiração dentro das Terras Indígenas chega a 1340 mm/ano, ao passo que as áreas não protegidas da Amazônia Legal têm em média 1220 mm/ano. (C) Localização das Terras Indígenas da Amazônia Legal. As estatísticas foram obtidas com base em médias anuais de 2004 a 2014 de produtos de sensoriamento remoto com 1km de resolução (MODIS – Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer) MYD11A1 (Wan et al., 2021) e MOD16A2 (Mu et al., 2014), respectivamente para temperatura de superfície e evapotranspiração.
Futuro ameaçado
Os resultados do estudo anterior indicam um avanço expressivo do desmatamento na Amazônia de 23 a 55 milhões de hectares e consequente emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (Alencar et al. 2023). Nesta Nota Técnica, o foco voltado para os impactos climáticos demonstrou que a aprovação do PL 2903 e/ou do Marco Temporal pode reverter as baixas taxas de desmatamento das TIs, historicamente 20 vezes menores do que as registradas em áreas não protegidas (Qin et. al. 2023). A derrubada da floresta, em larga escala, implica na diminuição da chuva (Smith et al. 2022). Notou-se que, para a Amazônia Legal, a aprovação de tais propostas pode resultar no aumento de 2°C e a região pode ter sua umidade reduzida em 9%.
Localmente, os efeitos podem ser ainda mais dramáticos. Os resultados desta Nota Técnica demonstram que a perda de vegetação pode elevar a temperatura da superfície em até 5°C e reduzir pela metade a evapotranspiração em regiões como as áreas adjacentes ao TIX. A vida dos povos originários é afetada diretamente por essas mudanças, mas também a produção de alimentos, com o aumento da aridez do ar (Barkhordarian et al. 2019) e a mudança no padrão da chuva, rompendo a segurança hídrica da Amazônia (Leite-Filho et al. 2020). Cultivos agrícolas que dependem da regularidade da chuva, como milho e soja, podem perder substancialmente a produtividade se os povos indígenas não tiverem seus direitos respeitados (Rattis et al. 2021).
Garantir o direito constitucional dos povos indígenas não é apenas uma questão de justiça histórica (Carneiro da Cunha et al. 2021; Carrero et al. 2022; Fellows et al. 2021), mas também de justiça climática global. Se quisermos cumprir as metas de desmatamento zero (Brasil 2023) e de redução de emissões de gases do efeito estufa, o país não deve medir esforços para proteger os direitos originários. Portanto, além das recomendações do estudo anterior, é imperativo reconhecer os povos indígenas como sujeitos de direitos no seu sentido mais amplo e dar um basta em qualquer tentativa de ceifar os direitos dos povos indígenas e o futuro da vida como a conhecemos.
1Recurso Extraordinário 1.017.365, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF).
2Para saber mais: https://shorturl.at/mquFO. Acessado em 01 de setembro de 2023.
3Para saber mais: https://shorturl.at/lyLNU. Acessado em 01 de setembro de 2023.
4Para saber mais: https://plataforma.seeg.eco.br/. Acessado em 27 de agosto de 2023.
5O Brasil, assim como os demais países signatários do Acordo do Paris, tem metas de redução de emissões de gases do efeito estufa, que são as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) junto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudança do Clima (UNFCCC). No Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho de 2023), a Presidência da República anunciou a revisão das metas brasileiras no sentido de torná-las mais ambiciosas e alcançar o equilíbrio climático global.
Referências bibliográficas
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Barkhordarian, A., Saatchi, S. S., Behrangi, A., Loikith, P. C., & Mechoso, C. R. (2019). A Recent Systematic Increase in Vapor Pressure Deficit over Tropical South America. Scientific Reports, 9(1), 1–12. https://doi.org/10.1038/s41598-019-51857-8
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