Geraldo Maia, o brigadista quilombola que combateu o fogo no Canadá

27 de novembro de 2023 | Notícias

nov 27, 2023 | Notícias

Por Bibiana Alcântara Garrido*

Geraldo Francisco Maia é o mais velho na brigada do Engenho II, uma das comunidades quilombolas no Sítio Histórico Kalunga, em Goiás. Aos 46 anos, ele integrou o grupo de 10 brigadistas quilombolas enviados pelo Brasil em missão humanitária de combate aos incêndios no Canadá. O país norte-americano viveu meses sob o fogo nos pinheirais.

A pedido do governo canadense, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima selecionou 104 especialistas – entre eles, 42 brigadistas – para atuar nas áreas mais afetadas. Além dos quilombolas, a delegação contou com nove brigadistas indígenas.

 

Geraldo foi um dos 42 brigadistas enviados ao Canadá pelo governo brasileiro (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

 

Para Geraldo, as diferenças no combate ao fogo no exterior trouxeram aprendizados. “É uma experiência que a gente traz para o Brasil também, né? Porque a vegetação lá é outra, é pinheiro. Algo que nós não temos aqui no Cerrado. Foi um aprendizado, por exemplo, com o fogo subterrâneo. Você cava 1 metro, 2 metros, e ainda tá queimando”.

Os brigadistas enviados na missão ficaram 30 dias na base de Chase, na Colúmbia Britânica. O trabalho começou com um treinamento. Geraldo e seus colegas contam que foram dois dias intensos para aprender como o fogo se comporta nas florestas boreais.

Além das táticas para lidar com o fogo subterrâneo, havia o fogo aéreo. Se no primeiro caso os brigadistas tinham que cavar fundo para neutralizar qualquer brasa ainda acesa – e, só assim, apagar completamente o incêndio em determinada região – no segundo, a atenção devia se voltar também para cima: pela característica da resina dos pinheiros, explicam, as chamas poderiam “pular” de uma árvore à outra, a vários metros de altura.

 

Parte da brigada do Engenho II, que integrou a missão ao país norte-americano (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

 

Um dos riscos na atividade é, portanto, ficar cercado pelo fogo. Dependendo da velocidade do vento e das condições que podem favorecer o maior alastramento do incêndio na vegetação, o fogo pode chegar perto rápido.

Acostumados à dinâmica no Cerrado brasileiro, os brigadistas são orientados a usar fogo contra o próprio fogo do incêndio. Somente assim é possível escapar em caso de ficar cercado. Outra dica de segurança é, se as chamas chegarem perto, sempre se abrigar em alguma área que já foi queimada.

O treinamento no Canadá apresentou medidas de segurança adaptadas à realidade local, inclusive, com técnicas de comunicação para que todos pudessem seguir os comandos e as orientações em inglês, mesmo sem falar o idioma.

A adaptação se desdobrou em outras particularidades para além do trabalho. Um dos pontos que mais chamou a atenção foi a comida canadense, que não se assemelhava em nada às guarnições oferecidas no Brasil. No lugar de marmitas com arroz, feijão, vegetais e proteína, o almoço lá era um lanche. Vivenciar o tempo frio também foi bem diferente do calor cerratense.

Mas o que mais marcou Geraldo foi a dimensão dos estragos do fogo. Diferentemente dos incêndios aos quais está acostumado, geralmente longe da casa das pessoas, lá ele viu de perto as residências atingidas.

“Você vê casa queimar, gente gritando, pedindo socorro. Foi bem forte. Era um fogo que a gente nunca tinha visto. Para nós aqui não existe esse tipo de fogo, né? E lá eu vi queimar posto e tudo. Você fica muito… eu nunca tinha visto um incêndio desse. Ficou marcado”.

Ele trabalha há dez anos como brigadista do Prevfogo, cobrindo os mais de 250 mil hectares do território Kalunga. Além do Canadá, já ajudou a combater incêndios em outros biomas brasileiros, como o Pantanal.

 

Fileira de brigadistas: à frente, com a bomba costal; depois, com o abafador (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

 

Geraldo lembra que entrou na brigada com a ideia de ajudar a preservar a natureza e de conseguir uma renda extra. Como a brigada é contratada por seis meses ao ano, nos outros seis o dinheiro vem do trabalho com a agricultura. Ele tem uma roça no quintal de casa, onde cultiva alimentos como arroz, feijão e milho. Antes de se tornar brigadista, trabalhava como agricultor em tempo integral.

“Achei, por bem, ajudar mais a preservar a natureza sobre as nossas vidas. Quanto mais nós preservarmos a natureza, nós estaremos preservando nós mesmos. As águas, as matas ciliares… porque se você começar a desmatar na beira do rio, aí você já não tem nada. Tem que proteger as nascentes”.

O brigadista acompanhou a consolidação do Prevfogo no território Kalunga: o começo desconfiado, depois, o estabelecimento da confiança entre a população e o trabalho do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

A brigada é hoje referência no combate ao fogo no Brasil. Não à toa cedeu 10 brigadistas para o grupo de 42 que foram ao Canadá. Com o investimento no Manejo Integrado do Fogo e a conscientização da população, vem transformando a relação com o fogo no coração do Cerrado.

Todos os anos, os brigadistas passam por uma prova de resistência física para avaliar se ainda se mantêm aptos ao trabalho que está por vir. A temporada da brigada começa em junho e vai até novembro, com jornadas de sete dias de trabalho e mais sete de folga. A entrada costuma ser às 8h, mas a saída depende do fogo. “Para combater, não tem horário certo”, comenta Geraldo.

O esforço físico diário de um brigadista envolve, por exemplo, carregar uma bomba costal com 20 litros de água nas costas, ou outros equipamentos, como o soprador. Além de mochila com barracas, sacos de dormir, EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), alimentos e água para consumo. Isso tudo durante caminhadas ou trilhas que podem se estender por quilômetros a fio, com subidas ou ladeiras, em vegetação fechada ou exposto ao sol, até chegar a um local de incêndio.

 

Ao centro, o soprador utilizado pelos brigadistas (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

 

Geraldo quer que a brigada do Engenho II continue firme, com cada vez mais condições de desempenhar o seu papel. Para isso, ele comenta sobre a necessidade de mais carros disponíveis.

“Que a brigada tenha mais recursos. É uma coisa que vem desde 2013. A gente tava no caminhão primeiro, porque não tinha viatura. Foi melhorando, veio a viatura. Mas se tivesse mais… no Canadá tem muito carro: o brigadista precisou, o carro tá ali, à disposição. As brigadas aqui têm, mas é um carro para cada. Se estragou, vai arrumar e a gente fica sem carro nenhum. Se tiver algum apoio também, né?”.

Ele lembra de um combate em que estava junto a outros dois companheiros, com bombas costais e um soprador, quando o fogo os cercou. Um dos brigadistas teve o corpo queimado. Geraldo se safou porque, na hora que o fogo foi para cima deles, ele conseguiu se jogar para uma parte da área que já estava queimada. O colega atingido teve de ser internado em um hospital de Goiânia, a mais de 500 quilômetros de Cavalcante, município onde fica a maior parcela do Sítio Kalunga.

Mesmo com proteção, as brigadas estão sujeitas a acidentes. A melhoria nas condições de trabalho, com mais estrutura, veículos e equipamentos, bem como na remuneração – contratados em brigadas temporárias ganham a partir de um salário mínimo; cargos de supervisão, um pouco mais – faz parte da garantia de um meio ambiente equilibrado e da dignidade no trabalho.

Incêndios no Cerrado e na Amazônia emitem bilhões de toneladas de gases do efeito estufa na atmosfera, agravando os efeitos das mudanças climáticas. O fogo não associado ao desmatamento foi responsável pela emissão de 4,3 bilhões de toneladas de carbono equivalente entre 1990 e 2022. As brigadas são, muitas vezes, o primeiro socorro que chega para evitar que o estrago seja ainda maior.

*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

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