Por Bibiana Alcântara Garrido*
“O tempo de antigamente não é como hoje, né? As brigadas vão evoluindo, buscando os conhecimentos da comunidade e passando as novas técnicas. O clima está totalmente diferente, então a gente vai atualizando e desenvolvendo um bom serviço para o território”, diz José Gabriel dos Santos Rosa, supervisor de brigadas estadual do Prevfogo em Goiás e responsável pelas brigadas quilombolas no território Kalunga.
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José Gabriel, supervisor de brigadas do PrevFogo em Goiás (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)
Gabriel integra a brigada do povoado de Engenho II desde a primeira turma. Aos 21 anos, tinha acabado de concluir os estudos quando apareceu a oportunidade. “É um serviço de suma importância, não só para o território onde eu vivo, mas mundialmente. O fogo, a mudança climática… está no mundo todo. Mas o mais importante que eu vejo é preservar o meu território. A gente não pode deixar acabar. Se é preservado, é porque nossos anteriores cuidaram, então acredito que nossa missão é continuar o trabalho”, afirma.
O Sítio Histórico Kalunga é o maior quilombo do país em extensão, com mais de 261 mil hectares que se distribuem pelas cidades de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Da área total, 83% está coberto por vegetação nativa, o que indica o papel da comunidade na proteção do Cerrado. O estado de Goiás, por sua vez, tem 30% de vegetação nativa remanescente. Os dados são de uma análise do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) a partir da plataforma da rede MapBiomas.
Apoio à comunidade
Em atividade desde 2011, as brigadas Kalungas contribuíram para a transformação do manejo do fogo no bioma: a conexão entre saberes ancestrais quilombolas e técnicas adaptadas a um clima em mudança resultou na diminuição dos impactos negativos de incêndios descontrolados no território e no fortalecimento de uma visão integrada do fogo.
Se a comunidade tinha o costume tradicional de fazer queimas em suas roças familiares, direcionadas ao plantio de subsistência, conta Gabriel, o trabalho das brigadas funcionou como prevenção e educação ambiental para que essas queimas fossem feitas de forma controlada, perto da época de chuvas, com acompanhamento dos brigadistas.
“A gente começou a apoiar a comunidade, colocando para eles que o clima mudou e que não chove mais como antes, aí foram observando e se adequando às normas. Hoje tá assim: se o pessoal quer fazer uma queima na roça, a primeira coisa que fazem é procurar a brigada para ter informações”, explica o supervisor.
Relação com o fogo
Diferente de outros ecossistemas, o Cerrado é um bioma que pode se beneficiar do fogo natural – ocorrido na transição das estações seca e chuvosa, causado por raios, de menor frequência e intensidade – ou das queimas prescritas para controle de material inflamável, como folhas e galhos secos no solo, que poderia alimentar incêndios descontrolados de grande proporção. Esses, por sua vez, sejam causados por acidentes ou intencionalmente criminosos, têm impacto negativo no bioma.
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Brigadistas Kalungas durante combate ao fogo (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)
“A contribuição de povos e comunidades tradicionais, como os Kalungas, na conservação do Cerrado foi e é fundamental para a manutenção dos serviços ecossistêmicos prestados pelo bioma, como a distribuição de água pelo nosso país. É preciso ter um olhar atento e políticas mais bem direcionadas para que essas pessoas possam ter melhores condições de vida e de trabalho, para que as culturas sejam respeitadas e para que outros modelos socioeconômicos, em harmonia com o meio ambiente, tenham condições de se desenvolver plenamente”, avalia Ane Alencar, diretora de Ciência no IPAM.
Mais da metade da vegetação nativa do Cerrado desapareceu entre 1985 e 2022: no lugar das áreas desmatadas, agricultura e pastagem cresceram 520% e 51%, respectivamente. Ainda de acordo com análise do IPAM, a partir da plataforma MapBiomas Brasil, 62% da vegetação nativa ainda viva no bioma está dentro de propriedades rurais particulares. Apenas 12% está em unidades de conservação e terras indígenas. Outros 13% se encontram em vazios fundiários, áreas sem informações de uso ou categoria fundiária.
Propriedades rurais privadas concentram 68,2% da área queimada no bioma nesses 38 anos, sendo os estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão com maior ocorrência de fogo. No território Kalunga, a maior recorrência na área queimada está nas proximidades da rodovia GO-241 e das cidades de Cavalcante e Araí.
Imersão no território
Entre 11 e 14 de setembro, o IPAM realizou uma imersão sobre o Cerrado no território em parceria com a comunidade Kalunga, pesquisadores, o Prevfogo e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Foram convidados representantes da imprensa e criadores de conteúdo.
“O objetivo foi proporcionar uma troca de experiências entre pesquisadores do IPAM, comunidade local, pesquisadores da Universidade Estadual de Goiás, Ibama e comunicadores sobre aspectos do fogo no Cerrado”, comenta Carolina Guyot, pesquisadora no IPAM e na iniciativa Tô no Mapa.
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Visita à área queimada (dir.) em atividade prescrita, pela brigada quilombola de Engenho II (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)
A classificação de dados de área queimada foi um dos temas discutidos. Pesquisadores, brigadistas e comunidade local concordam que o mapeamento das cicatrizes de fogo no Brasil pode ser melhorado com mais informações sobre as queimas prescritas no Cerrado, previstas dentro do MIF (Manejo Integrado do Fogo), de maneira a diferenciar esses registros, captados por imagens de satélite, das ocorrências de incêndios, por exemplo.
Para Gabriel, o compartilhamento também mostrou resultados do trabalho das brigadas. “É uma troca muito importante que traz novos conhecimentos, novas formas de avaliar os resultados das pesquisas feitas dentro do território. É de suma importância a gente ver como está mantendo preservado o território, com as queimas nas épocas certas. A gente também tenta repassar um pouco do que a gente sabe. Isso é de grande valia não só para o território, mas para todos os envolvidos”.
O Prevfogo mantém cinco brigadas para atuar na prevenção, controle e combate a incêndios florestais e vegetacionais na região do Cerrado Kalunga. São cerca de 75 brigadistas baseados no município de Cavalcante, onde fica a maior porção do quilombo.
*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br