Por Lays Ushirobira*
Enquanto o mundo corre contra o tempo para implementar soluções que mantenham a Amazônia de pé, muitos jovens já estão com a mão na massa para traçar novos rumos para o território e o futuro do planeta. Walelasoetxeige Suruí, mais conhecida como Txai Suruí, é uma das jovens na linha de frente pela Amazônia. Ela ganhou destaque globalmente no ano passado por ser a primeira indígena a discursar na abertura de uma Conferência do Clima das Nações Unidas (COP 26), mas sua trajetória de trabalho e engajamento socioambiental é extensa.
Ativista do povo Paiter Suruí; coordenadora da Kanindé, que trabalha há 30 anos com povos indígenas em Rondônia; coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia; voluntária do Engajamundo; conselheira do WWF Brasil. Aos 25 anos, Suruí é prova de que a juventude está pronta para assumir o protagonismo do presente e mudar a narrativa para um futuro melhor.
Em entrevista à equipe do Amazoniar, iniciativa do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) para promover um diálogo global sobre a Amazônia, Suruí falou da importância da participação coletiva nas discussões e tomadas de decisões, e o papel dos jovens e dos próximos governantes para respeitar a sociobiodiversidade do território.
Do que você mais se orgulha de ter feito na/pela Amazônia?
Acho que a coisa mais impactante que eu fiz pela Amazônia foi o meu discurso na COP 26. Na Amazônia, não tem como citar somente uma coisa, porque o trabalho que fazemos aqui é o trabalho das nossas vidas. Nós trabalhamos em vários ramos, não somente na defesa e no monitoramento territorial ou no ativismo político pela Amazônia, mas também na produção, com reflorestamento, e todas essas coisas são importantes para as comunidades da Amazônia e para o território no geral.
Poderia nos contar sobre a sua história com a Amazônia? O que ela significa para você?
Eu sou indígena do povo Paiter Suruí, que vive na terra indígena Sete de Setembro há pelo menos 6 mil anos, então conseguimos imaginar há quanto tempo esse povo está resistindo até os dias de hoje. Nós, povos indígenas, não apenas vivemos aqui, mas somos a floresta também, então a minha relação com a Amazônia é de vida e de muita luta, que aprendi com os meus pais e trago junto com a minha cultura. Sempre falo que vivo em três mundos na verdade. Na cidade, quando meus pais não podiam nos levar para a aldeia ou quando estava estudando e tinha que ir para as aulas. E os outros dois mundos são a minha própria terra, a Sete de Setembro, onde cresci; e a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau. A Kanindé foi fundada pela minha mãe para trabalhar com esse povo. Hoje trabalhamos também com o povo Arara, Gavião e vários outros do estado, mas a organização foi criada inicialmente para trabalhar com Uru-Eu, porque minha mãe tem uma relação muito íntima com eles. Quando houve o primeiro contato com esse povo, há trinta anos, a minha mãe estava lá presente. Eles a chamam de mãe e eu passei grande parte da minha infância lá. Muitas vezes as pessoas pensam nos indígenas como se fossem uma coisa somente, mas cada povo tem a sua cultura, seu ensinamento, sua sabedoria, então eu sempre falo desses três mundos, porque eles são diferentes. A minha relação com a Amazônia é parte do que eu sou como pessoa hoje.
Qual é a sua leitura sobre o que acontece na Amazônia hoje?
Realmente são tempos sombrios. Eu digo que o colonizador veio e nunca foi embora. Quando chegou, houve invasão das nossas terras, ameaça às nossas vidas, não podíamos exercer a nossa espiritualidade. E não é isso o que acontece até hoje? Com o governo atual, isso piorou demais, porque não se trata apenas de uma isenção de responsabilidade, mas um incentivo à invasão dos nossos territórios, à destruição, à ilegalidade. Hoje, o Brasil é um dos países mais perigosos para os ativistas em direitos humanos no mundo.
Quando a pandemia começou, um jovem indígena do povo Uru-eu foi assassinado e até hoje não temos resposta sobre nada, nem por parte da polícia nem por parte do poder público. Nós sabemos que foi porque o Ari era um guardião do seu território e uma pessoa muito ativa no seu grupo de monitoramento. É um sofrimento profundo, porque na cultura do povo Uru-eu-wau-wau, quando uma pessoa morre, não podemos falar mais o nome dela, mas até hoje a questão não está resolvida. Imagine que você não pode falar o nome daquela pessoa, mas é obrigado, porque precisa denunciar o que está acontecendo. Você é ferido duas vezes.
A Amazônia está no centro do mundo hoje, porque vemos as consequências da destruição do meio ambiente, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. O Observatório do Clima me chamou para comentar o último relatório do IPCC, que reforça como a Amazônia já é e será um dos lugares mais afetados com temperaturas extremas. Hoje, falamos muito da Rússia e da Ucrânia, mas aqui as pessoas também estão lutando pela floresta e isso é muitas vezes esquecido. Quando vamos acabar com essa guerra e tirar os 20 mil garimpeiros que estão no Yanomami? Durante a pandemia, houve um aumento das queimadas dentro das terras indígenas e fechamos o ano passado com os maiores índices de desmatamento em 15 anos. Continuamos defendendo os nossos territórios e a vida no planeta, porque sabemos da importância da Amazônia para a questão climática.
Eu tive a oportunidade de abrir a COP 26, mas sempre fiquei muito reflexiva: me sinto orgulhosa de ser a primeira mulher indígena a falar naquele espaço, principalmente porque meus parentes me falaram que se sentiram representados, mas será que não é tarde demais? Quando vamos sair da discussão para integrar o processo decisório que vem decidindo as nossas vidas?
Para você, de que forma os outros países impactam e podem contribuir para a proteção da Amazônia em pé?
Depois da COP 26 eu tive a oportunidade de ir à Suécia, por exemplo, falar com alguns representantes de outros países para discutir o que pretendem fazer em relação à Amazônia. O produto que a Suécia mais importa é o minério, e o garimpo afeta diretamente as terras indígenas. Estamos acompanhando uma lei da União Europeia sobre a questão da cadeia de produção. Apenas em uma parte do Uru-eu-wau-wau, que chamamos de Burareiro, tem 6 mil cabeças de gado. Fizemos uma pesquisa e estamos entrando no Tribunal Penal para denunciar isso, porque descobrimos que a carne ilegal está indo para empresas Casino para serem comidas na França e o couro vai para os Estados Unidos para fazer banco de carro. Fica clara a responsabilidade dos outros países em relação ao que está acontecendo aqui na Amazônia. Continuarão comendo carne amaldiçoada do Uru-eu? Continuarão utilizando os produtos derivados do genocídio indígena, como o que acontece no Yanomami? Eles têm o poder de mudar muitas coisas, de pressionar o Brasil e de não aceitar esses produtos que vêm da destruição e do sangue indígena.
Como é a vida de quem está na linha de frente da proteção da Amazônia e quais são os sinais que vocês já observam da emergência climática no território?
É uma vida de muita luta pela proteção dos nossos territórios, principalmente porque vivemos hoje um contexto de ameaça, inclusive por parte do Legislativo, com o Marco Temporal, o PL da grilagem. No ano passado, por exemplo, o governador do estado [de Rondônia] propôs uma lei para acabar com duas unidades de conservação e tivemos que entrar na justiça para pedir a inconstitucionalidade disso. Nosso trabalho é de luta pelo nosso território, o que, modéstia à parte, fazemos com muita maestria. Antes da COP 26, fui para a minha aldeia me aconselhar com os meus pais, porque ia representar o meu povo e me ensinaram que, para isso, a primeira coisa que devemos saber é ouvir. Fui lá para conversar sobre como estamos sendo afetados por essas mudanças climáticas, que agora conseguimos conectar com a nossa luta. Antes, a questão climática não incluía pessoas, só agora entende-se que falar de mudanças climáticas é falar de pessoas. Eles me disseram que já não encontramos algumas plantas sagradas e medicinais no nosso território, o que afeta tanto a nossa saúde, quanto a nossa espiritualidade. Em 2020, o meu povo estava esperando uma grande safra de café, mas ela veio muito menor do que esperávamos, o que afetou a nossa saúde, segurança alimentar e também no quesito socioeconômico. Com o aumento do desmatamento e de queimadas, os animais fogem e não podemos comê-los. Com o garimpo e as hidrelétricas, os peixes somem. Produzimos muitas coisas, mas estão matando a nossa comida, nos fazendo passar fome, envenenando a nossa água. Isso é consequência das mudanças climáticas também. Eu falo que somos afetados duas vezes: com as causas e com as consequências. As causas, nós sabemos: o desmatamento, a queimada, mineração, garimpo, que são algumas das principais questões nas mudanças climáticas. E a consequência é toda a fragilidade que isso traz. Quem mais sofre com as consequências climáticas são as populações vulneráveis, independentemente de não serem elas as que mais poluem. Nós estamos vendo isso não somente nas terras indígenas, mas nas próprias cidades, onde quem mais sofre é a população em situação de pobreza.
Para você, qual é a importância dessas eleições para a Amazônia e os brasileiros que lá vivem?
Nos encontramos nessa situação muito por conta do nosso Congresso e da nossa Câmara. Estamos falando da importância não somente de votar em um presidente, mas também de pensar na questão climática e ambiental como algo suprapartidário, que não deveria estar em um plano de governo de um candidato. Estamos falando da nossa vida, então isso deveria ir além, porque conhecemos as consequências de um governo anti-indígena e anti-meio ambiente. Realmente foi cumprido aquilo que foi prometido: nós não tivemos uma terra indígena demarcada durante esse governo. Houve um enfraquecimento da legislação ambiental. É a segunda vez que um servidor da Sedam [Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental] é baleado pelos invasores, porque houve enfraquecimento dos nossos órgãos ambientais, um governo que quer armar as pessoas e desarmar os fiscais do meio ambiente. Há um projeto de lei que quer permitir caça em unidade de conservação e armar as pessoas para isso, o que aumentará a violência no campo. Isso tudo passa por essa política também, que aceita e incentiva. Estamos em um momento crucial não somente para o Brasil, mas para o mundo inteiro, principalmente quando falamos da pauta climática, porque temos de começar a pensar em questões como a adaptação para esses eventos climáticos. Tem muita coisa que não conseguimos mais reverter, apenas tentar mitigar e proteger as pessoas que vão sofrer mais com esses eventos, então nós precisamos de governantes que também pensem nisso e não diminuam a participação da sociedade civil. Conseguimos ver nitidamente um enfraquecimento dos conselhos: participamos do Conselho do Meio Ambiente e, se antes conseguíamos pelo menos ter um diálogo, hoje isso não existe mais.
Independentemente de quem assuma o governo, teremos um caminho muito longo para contornar tudo. Na COP, prometemos que vamos acabar com o desmatamento, mas quando chega aqui se faz uma política contrária, inclusive de ataque às terras indígenas. Nós temos que entender que para salvar a Amazônia, conseguir superar a crise e chegar na tal justiça climática, temos que demarcar terras indígenas. Assim como em qualquer lugar, teremos soluções diferentes quando tivermos pessoas diferentes decidindo. Podemos mudar isso com mulheres indígenas sendo eleitas, pessoas negras, mulheres. Candidatos que pensem na pauta ambiental, em pessoas. Conseguimos ver a diferença que uma Joênia [Wapichana] faz, mas precisamos de muito mais: é o nosso sistema e temos de estar nesses espaços também. Os povos indígenas principalmente – quem fala melhor da Amazônia do que eles?
Como você vê o poder dos jovens nas tomadas de decisões sobre assuntos relacionados à Amazônia? Qual é o papel e o diferencial que eles podem ter dentro desse contexto?
Acho que o papel da juventude é de esperança. Muitas vezes somos questionados pela pouca idade. Eu tenho um respeito muito grande, que vem da minha cultura, pelos que vieram antes de mim. Respeito e admiro a luta deles, e os jovens estão aqui para continuar esse trabalho. Meu povo traz um ensinamento muito grande sobre a importância de a juventude tomar esse papel dos mais velhos. Fizemos o primeiro “Códigos e Normas” escrito de um povo indígena brasileiro, é um plano de 50 anos. Qual governo faz um plano de 50 anos hoje em dia? A cada quatro anos, deixa-se tudo o que o anterior fez sem pensar no coletivo.
Eu acredito que a construção de um mundo melhor não será fácil, mas eu luto por um mundo em que as mulheres possam andar livremente, os nossos territórios não sejam invadidos, por um mundo com igualdade de gênero, anticapitalista, antirracista, que não seja tão desigual. Muitas vezes vemos os jovens desinteressados pela política, mas um dos assuntos pelos quais mais se interessam é o meio ambiente, e isso é falar de política também. Acho que estamos entendendo isso e mostrando que não vamos deixar isso acontecer. Sou coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, que conta com a participação de 12 povos aqui do estado, e vejo um esforço dos jovens para serem reconhecidos também nessa luta. Grande parte das pessoas que estão lá já fazem parte das associações dos seus territórios e estão dentro do movimento falando do que queremos, do que é importante para a juventude, pensando nessa questão interseccional quando falamos do feminismo, por exemplo. Estamos tentando alcançar diferentes espaços, mostrando que conseguimos contribuir nessa luta e que queremos ver um mundo melhor também.
O que você acha que não funciona mais na política e o que nós poderíamos mudar daqui para frente? Acha que os jovens estão conseguindo mudar esse cenário?
Eu não acredito em nada que não seja construído coletivamente, então acho que as mudanças passam por participação popular real. Acho sim que estamos, como jovens, mudando isso e alcançando esses espaços também. Sou voluntária do Engajamundo e estamos, por exemplo, no Fórum Floresta construindo isso juntos. Participamos também de conselhos. Nós estamos buscando cada vez mais a participação popular e pressionando por melhorias. Eu acho que o caminho passa por várias coisas, inclusive por eleger indígenas. Eu faço parte do Parlaíndio, que tem várias lideranças indígenas. Na última assembleia, propomos a criação de uma chapa nacional com vários líderes indígenas, como meu pai [Almir Narayamoga Surui], Daniel Munduruku, O-é Paiakan, Marcos Apurinã. É importante termos essas pessoas nos representando também. Um exemplo de como estamos depositando nossas forças na juventude é que a maioria dos projetos que temos no momento sobre eleição é para tirar o título de eleitor, porque confiamos e apostamos na juventude. Eles têm uma cabeça crítica diferente e que temos realmente que apostar nela. Nós vemos como o nosso futuro, mas já é o nosso presente.
Tem alguma experiência de gestão coletiva dos povos indígenas e que poderíamos incorporar?
Sobre governança e participação, eu penso no “Códigos e Normas” do povo Paiter Suruí. Pegamos os nossos princípios de viver em harmonia com a natureza, de preservação e o que queremos para o nosso futuro, e fizemos isso com a comunidade e a governança do povo, que tem o seu parlamento também. O atual Labiway Esaga [termo do povo Paiter Suruí para se referir ao líder] é o meu pai. Queremos fazer com que esse parlamento funcione para aumentar a participação popular, saber o que a comunidade quer. Durante o ano passado, com o Brasil sofrendo ataques à democracia, nós do povo Paiter Suruí decidimos fazer nossa primeira eleição. Todos que tinham mais de 15 anos puderam votar para escolher seu Labiway Esaga. Quando fomos decidir sobre um projeto nos Uru-Eu, chamamos toda a comunidade, os representantes de cada aldeia, para decidirem o que era melhor para o povo. O mais legal é que tem coisas que não precisamos falar: todos pensam no benefício da comunidade inteira. Outro exemplo foi no Movimento da Juventude: quando fizemos a eleição da nossa nova coordenação, tivemos 50 homens e 50 mulheres sem colocar nenhum pré-requisito para isso. As mulheres no movimento da juventude têm papéis de liderança importantíssimos. Eu acho que a maior lição que os povos indígenas têm é entender que a vida do outro – humanos, animais, floresta – não vai além da nossa.
Qual mensagem gostaria de passar para os próximos governantes do Brasil?
Como mulher indígena da Amazônia, minha mensagem para os governos, não somente do Brasil, mas do mundo todo, é que entendam a importância da sabedoria dos povos indígenas e da floresta em pé para a vida no planeta. E que coloquem a pauta do meio ambiente como algo suprapartidário. Que os outros países entendam como vêm impactando no que acontece aqui no Brasil, e que o Brasil saiba proteger e valorizar aquilo que temos de mais precioso, que são as terras indígenas e a nossa floresta amazônica. É a maior floresta tropical do mundo, com a maior biodiversidade, sem falar da riqueza de povos e culturas que temos aqui. Uma coisa muito importante de se comentar é a questão dos povos indígenas isolados, que vêm sofrendo muita pressão e que sequer podem se proteger, não sabem o quanto suas terras estão sob ameaça e ataques. Nós precisamos lutar por esses povos também. É necessário entender que uma política diferente será aquela que respeite os povos e comunidades da floresta, que exija demarcação das terras, que respeite as mulheres, ou seja, um mundo melhor para todos. Que os eleitores compreendam a importância do voto deles nesse processo, e que os próximos representantes saibam que nós vamos pressionar para isso, porque nós colocamos essas pessoas lá para nos representar.
Sobre o Amazoniar
O Amazoniar é uma iniciativa do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) para promover um diálogo global sobre a Amazônia e sua importância para as relações do Brasil com o mundo. No seu quarto ciclo, o Amazoniar promoverá uma série de entrevistas com jovens brasileiros e estrangeiros que inspiram a mobilização por justiça climática, especialmente na Amazônia. Em junho, os bate-papos serão publicados semanalmente na íntegra no site do IPAM. Inscreva-se na newsletter para receber as próximas entrevistas!
*Jornalista e consultora de Comunicação no IPAM