Por Lays Ushirobira*
Eleger representantes para todos os níveis políticos que entendam o contexto da Amazônia e estejam comprometidos com soluções para acabar com o desmatamento e garantir os direitos das comunidades tradicionais é escolher também um futuro para todos do Brasil e do mundo. “A Amazônia em si é complexa e a proteção dela também. Precisamos nos debruçar para entendê-la, porque o que acontece lá reverbera no Brasil todo e em outros países”, explica Ludmila Rattis, pesquisadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do Woodwell Climate Research Center. “É muito difícil pensarmos num futuro se não mudarmos nossas atitudes e políticas.”
Nascida no Cerrado, a cientista trabalhou na Mata Atlântica e há seis anos “vive e respira a Amazônia”. Em bate-papo com a equipe do Amazoniar, ela compartilhou algumas experiências em campo e falou das consequências da destruição do bioma para o clima, a produção de alimentos e a segurança alimentar. Se por um lado entender a Amazônia pode ser uma tarefa complexa, para Rattis, “acabar com o desmatamento pode ser mais fácil do que pensamos”. “Se juntos nós conseguimos colocar a Anitta em primeiro lugar no Spotify, conseguimos também colocar um governante bom à frente desse país”, brincou, incentivando a atuação coletiva para melhores políticas de desenvolvimento.
Confira a entrevista do Amazoniar com Rattis:
Como foi sua experiência ao chegar na Amazônia pela primeira vez?
Fui fazer um curso de ecologia na floresta amazônica. Desci em Manaus às 2h da manhã e, quando saí do aeroporto, as lentes do meus óculos embaçaram com o calor e a umidade da cidade. Percebi que eu ia passar um perrengue muito grande, porque não usava lente de contato, tenho um grau alto de miopia e ia ficar um mês no meio do mato sem poder me localizar bem. Isso é sério num trabalho de campo na Amazônia. Lembro que, numa noite de lua cheia, eu estava em uma floresta de terra firme, a duas horas a norte de Manaus, e tentava achar a lua, mas não conseguia encontrar um buraco no céu, porque as árvores sobem e formam uma espécie de teto. É esse universo: é uma imensidão, uma imponência de floresta, e você tem que ter muito respeito por esse chão. Você não pode encostar em nada sem antes observar e realmente pedir licença para entrar. A Amazônia é um organismo imponente e que pode dar várias coisas boas, como também pode tirar coisas de nós.
Em toda sua trajetória, qual foi o seu maior aprendizado que gostaria de passar para o mundo?
Quanto mais eu trabalho com os indígenas, percebo que tenho muito a aprender com eles. Uma vez eu fui dar um curso no Amapá e tive a honra e o prazer de mostrar algumas ferramentas que desenvolvemos, uma delas a plataforma que se chama Climate Change, que identifica mudanças climáticas em cada terra indígena e unidade da conservação de toda a Pan Amazônia. Ali tive a oportunidade de estar mais perto de comunidades indígenas e, para mim, quanto mais interajo com elas, mais me dou conta do tamanho da minha ignorância e de quanta coisa eu preciso escutar delas. O que nós chamamos de ecologia, por exemplo, um termo cunhado no século XX, é o que eles chamam há milhares de anos de urihi, que é a interação da terra e da natureza. Eles têm o xapiri também, que são grandes protetores da natureza. Os indígenas já entendem do ciclo da água e do carbono há muito mais tempo. Então eu acho que o grande aprendizado é: por mais que estudamos, por mais artigos científicos que nós publicamos, o nosso conhecimento está muito atrás desses povos tradicionais, das comunidades indígenas e das pessoas que vivem ali da e na Amazônia.
Qual é a sua leitura do que está acontecendo hoje na Amazônia?
Apesar de a Amazônia ser pauta em vários jornais, eu acho que falta empatia por parte de todo mundo. Admiro muito jornalistas que vão até lá documentar o que está acontecendo. Conheço alguns que não podem entrar em várias cidades da Amazônia, porque são ameaçados de morte por causa daquilo que eles escrevem e denunciam. Acho que falta também olharmos para a Amazônia de uma maneira prática. No ano passado, durante a temporada de fogo, visitei uma área que estava sendo grilada, desmatada e queimada, e a sensação de impunidade era gritante. Sinto uma revolta pela destruição desse bioma importantíssimo para a manutenção da vida no planeta. É uma morte que reverbera: a árvore que tomba ali reflete a milhares de quilômetros de distância, não existe ação para conter isso.
A pressão da população é importantíssima. Precisamos conhecer melhor esses problemas no chão, o que faz o grileiro responsável por aquela área que está sendo desmatada. Eu passei apenas dois dias na cidade e já sabia quem era o grileiro, então as autoridades também sabem. Se tirarem esse grileiro, vão aparecer mais dez. Às vezes não é uma questão de inação das autoridades, mas sim porque é um lugar de muito perigo. O Brasil é o país onde mais morrem ativistas socioambientais no mundo há muitos anos, e não é de agora, isso acontece há muito tempo. Tenho a impressão de que acabar com o desmatamento é muito mais fácil do que pensamos, e que depende de muito menos coisas do que imaginamos. Acho que, acima de tudo, falta vontade do poder público e existe uma tolerância com a criminalidade.
Na sua opinião, de que forma o engajamento da juventude e da população em geral pode ajudar a reverter a destruição do bioma?
Sabe que antes, quando as redes sociais surgiram, lembro que era muito criticado quando a pessoa fazia um post de protesto, com “textão” e tal. Hoje em dia, viralizar uma hashtag ajuda muito a derrubar projetos de lei e mudar o curso de votações. Como pudemos ver não só no Brasil, mas em vários países no mundo, as redes sociais mudaram o resultado das eleições. Esse ativismo tem que ser muito pé no chão. É importante ler, ir para a Amazônia se tiver a oportunidade. Um dos melhores conselhos que recebi na vida é que se a vida te oferecer coentro, coma coentro: vá para a Amazônia, viva a Amazônia, experimente as coisas que ela oferece. Mas, se não houver essa oportunidade, há outras formas para entender a Amazônia e fazer parte desse ativismo de maneira “pé no chão” e bem informada: ler grandes autores que escrevem sobre o território, como Eliane Brum, Fabiano Maisonnavei, Daniel Munduruku. Tem tanta informação disponível! Leia e converse com cientistas que trabalham lá para poder escrever de maneira mais apurada. Às vezes a pessoa escreve uma informação errada e mais atrapalha do que ajuda, então é preciso ter cuidado.
Poderia explicar qual é a relação entre o agronegócio, a produção de alimentos, a mudança climática e a Amazônia?
O desmatamento na Amazônia ocorre em diferentes classes territoriais. O desmatamento em terra pública não é para produção de alimentos: estamos falando de desmatamento para especulação imobiliária, grilagem de terra, de gente que quer ganhar dinheiro em cima da floresta. São pessoas que não se importam com o fato de que, ao cortar uma árvore, deixamos de jogar para a atmosfera 300 litros de água por dia, o que esquenta o planeta, ou que a cada 10% de floresta desmatada, aumenta em média 0,5 °C da temperatura.
Há também a produção de commodities, da qual o Brasil depende: 6% do PIB brasileiro depende diretamente do agronegócio. Se considerarmos o comércio em torno do agronegócio, esse número sobe para 22% ou 23% do PIB. Isso tem a ver com a produção e venda de commodities, como carne, soja, milho, algodão. O Brasil é o maior produtor de soja do mundo hoje junto com os Estados Unidos. Se a região do Matopiba, do Goiás e do Mato Grosso fosse um país, seria o terceiro maior produtor do mundo e o Brasil sem essa área ainda seria o segundo. Existe desmatamento para produção dessas commodities, principalmente no Cerrado. Temos o mecanismo da Moratória da Soja na Amazônia, que teoricamente não permite a compra de soja de área desmatada depois de 2008, mas se ainda acontece o avanço da soja no Cerrado, há também abertura para pastagem.
E tem o desmatamento em pequenas propriedades que, de fato, é para produzir alimentos. O que precisamos agora é de um investimento em assistência técnica e de subsídio de inputs agrícolas para melhorar a espécie de gramínea plantada nos pastos, diversificar a cadeia… uma propriedade de menos de 100 mil hectares de pecuária na Amazônia não é sustentável do ponto de vista econômico, nem social e nem ambiental. Ao olhar para o desmatamento, é importante desmembrá-lo por classes territoriais.
Há ainda desmatamento e mineração dentro de unidades de conservação e de terras indígenas, que também é “bandidagem”, mas o mais importante de tudo não é olhar apenas para a pessoa que entra nesses territórios, mas também quem está por trás de tudo isso. Uma vez eu estava numa expedição na Amazônia e a viatura do Corpo de Bombeiros tomou dois tiros. Quando foram ver, foi uma pessoa que morava numa barraca no meio do mato, sem nada… É preciso ir atrás de quem pagou para essa pessoa chegar lá, porque muitas vezes ela faz isso por não ter outra saída ou outra oportunidade, e está pagando por outro que escolheu a destruição e colocar em risco o futuro da humanidade por causa de lucro.
Quem é afetado pelo desmatamento?
O desmatamento afeta o Brasil inteiro. Algo que sempre faço para me preparar para as eleições é ler os planos de governo de todos os candidatos. Lembro que na última eleição presidencial, vi que é raro o candidato que entende os reais problemas da Amazônia e que propõe soluções para eles. É importante que a população olhe para esses programas de governo e questione os candidatos sobre o que eles pretendem fazer pela Amazônia. Eu respiro a Amazônia, trabalho na e pela Amazônia há seis anos, então estou familiarizada com os problemas e as soluções que são propostas, mas fico estarrecida com a ignorância e desinteresse dos candidatos.
A Amazônia em si é complexa e a proteção dela também. Precisamos nos debruçar para entendê-la, porque o que acontece lá reverbera no Brasil todo e em outros países. A formação de chuva na Amazônia faz chover no Texas, nos Estados Unidos, até no Uruguai, então é de interesse não só dos eleitores brasileiros, como das Américas como um todo. Como vivemos num mundo globalizado, que depende da produção de um país ou de outro, é um tema mundial. Se a quantidade de carbono armazenado na Amazônia é emitida, o mundo é prejudicado, a subida do nível dos oceanos pode fazer sumir países inteiros.
Caso não haja uma mudança agora, o que podemos esperar para o nosso futuro, na sua visão como cientista?
No ano passado, publicamos um artigo científico mostrando a viabilidade climática das áreas de agricultura no Centro-Oeste e no Matopiba, que é a região do Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia. De acordo com o cenário mais pessimista do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU], 100% dessa região estará climaticamente inviável para a agricultura. Ou reinventamos a agricultura, ou não vamos conseguir produzir mais nada. Esse cenário, desenhado pelo IPCC como pessimista, mostra uma concentração de gás de efeito estufa na atmosfera muito parecida com a trajetória que estamos seguindo hoje, então é muito difícil pensarmos num futuro se não mudarmos nossas atitudes e políticas de distribuição e de uso de água, e de desmatamento.
O Código Florestal brasileiro, que protege a vegetação nativa, é um dos mais fortes do mundo e não é à toa: temos a maior parte da maior floresta tropical do mundo. De vez em quando me chamam para uns debates sobre desmatamento legal e ilegal. A questão não é sobre desmatamento legal ou ilegal: o clima não suporta o corte de nem mais uma árvore. Um produtor pode até ter o direito de desmatar para produzir na sua área, mas precisa saber que a produtividade da sua lavoura e dos seus vizinhos vai depender da vegetação nativa que funciona como aparelho de ar condicionado. As árvores armazenam carbono, evitando que o aquecimento global piore e mitigando eventos climáticos extremos. A cada 10% de desmatamento, meio grau da temperatura aumenta. Você quer subir 2 ou 4 graus de temperatura na sua propriedade enquanto o mundo está pegando fogo ou criar resiliência na sua terra? É essa a conversa que temos que ter: de governança a escala nacional, regional e de cada propriedade.
Qual é a mensagem que deixaria para os jovens do Brasil e do mundo antes das eleições?
Se nós conseguimos colocar a Anitta em primeiro lugar no Spotify, conseguimos colocar um governante bom à frente desse país. Precisamos de uma pessoa que saiba dos problemas da Amazônia, que esteja comprometida com as soluções e a governança da terra. Não estou falando de um ou outro candidato, mas sim de cobrar para que nos planos de governo haja um capítulo Amazônia. Estamos caminhando para uma situação muito complicada.
Um dia eu estava andando na rua e estava acontecendo uma dessas greves das crianças de sexta-feira, em que elas fazem um apelo às autoridades para que haja algo concreto diante da mudança climática. Uma menina veio andando na minha direção com um cartaz que dizia “você vai morrer de velha, eu vou morrer por causa do clima”. Isso foi muito pesado e realista. Só que temos que acreditar na nossa força – e temos muita força! – para cobrar que as pessoas pensem em soluções. Acho muito legal quando alguém que não é cientista propõe soluções para a Amazônia, porque às vezes ela vê a situação por um outro ângulo, então vamos conversar e trabalhar juntos: intolerância política e ideológica não leva a nada. Quando tem seca, crise hídrica, conta de luz alta, quando está um sol de rachar ou uma chuva torrencial… vem para todo mundo. Precisamos agir mais como esse organismo único que somos.
Qual mensagem gostaria de passar às próximas pessoas que assumirem a presidência do país?
Dá para agir com um pouquinho mais de responsabilidade e pensando mais a longo prazo? Pensem para além dos quatro anos de mandato, tomem atitudes que são para a vida, para além da expectativa de reeleição ou não. Pensem na população, na nossa existência. Vou contar uma história que me emociona muito: em uma das expedições de campo, chegamos numa área que estava em chamas e tinha uma árvore de uns 30 metros de altura pegando fogo. Tínhamos que gravar uns vídeos técnicos falando o que estava acontecendo ali, e eu comecei a chorar e não conseguia gravar. O único que consegui fazer era um vídeo em que eu estava desabando, parecia que eu ia chorar a qualquer momento, e ele nem foi divulgado de tão ruim. A destruição pela destruição me comove e tomara que sempre me comova, porque não quero me acostumar com uma Amazônia destruída nunca. Por que esses políticos se acostumam com a Amazônia destruída? Como essas pessoas conseguem dormir? Falaria para elas lerem Eduardo Galeano, principalmente quando ele fala: “esses f*** que se dedicam a atormentar a humanidade vivem vidas longuíssimas, não morrem nunca, porque não têm uma glândula, que é bem rara e que na verdade se chama consciência”. Tenham consciência que se não for pela população, que seja pela sua família, porque o que acontece na Amazônia sempre afetou e vai afetar todos nós.
Sobre o Amazoniar
O Amazoniar é uma iniciativa do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) para promover um diálogo global sobre a Amazônia e sua importância para as relações do Brasil com o mundo. No seu quarto ciclo, o Amazoniar promoverá uma série de entrevistas com jovens brasileiros e estrangeiros que inspiram a mobilização por justiça climática, especialmente na Amazônia. Entre maio e junho, os bate-papos serão publicados semanalmente na íntegra no site do IPAM. Inscreva-se na newsletter para receber as próximas entrevistas!
*Jornalista e consultora de comunicação no IPAM