Creuza Krahô e o resgate das sementes tradicionais: uma jornada ancestral

29 de maio de 2023 | Notícias

maio 29, 2023 | Notícias

Por Karina Custódio*

Entre as muitas histórias indígenas pouco contadas está o resgate das sementes tradicionais do povo Krahô, protagonizado por lideranças como Getúlio Kruwakraj Krahô, Oscar Ha’porô e Creuza Prumkwyj Krahô. Cacique da aldeia Sol, no nordeste do Tocantins, Creuza é mãe de três filhos e viajou muitos quilômetros para recuperar parte do que a colonização retirou de seu povo: as sementes Mehim.

A roça dos Mehim, a autodenominação do povo Krahô, era colorida e diversa. Além de mandioca, batata doce e inhame, havia variações de milho. “Nós conhecemos o milho-pipoca, o milho uibra e o milho pōhympej. Esse milho não tem em português!” explica Creuza. Durante séculos, a variedade foi a base alimentar do povo e conviveu em harmonia com o Cerrado.

Como relata a publicação “Sementes Locais: experiências agroecológicas de conservação e uso”, realizada pela Ana (Articulação Nacional de Agroecologia) e parceiros, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) não respeitou a agricultura Mehim, impôs a pecuária, a monocultura e novas tecnologias que continuaram sendo incentivadas pela então Funai (Fundação Nacional do Índio). Assim, as sementes tradicionais se perderam. E com a perda veio a fome.

Os anciões Mehim apontaram a ausência do milho pōhympej, um alimento sagrado, como a causa da fome. Lideranças e indigenistas passaram a trabalhar pelo resgate de sementes dessa e de outras variedades. Creuza Prumkwyj estava em Brasília, cursando o MESPT (Mestrado em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais), da UnB (Universidade de Brasília) quando entrou na busca pelas sementes sagradas.

Na capital, a cacique encontrou Terezinha Dias, pesquisadora da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e compartilhou a busca de seu povo.

“Conversando com ela, ela falou que tinha muita semente guardada no arquivo da Embrapa. E começamos a fazer o encontro. A gente foi lá procurar, ver, entrar na câmara fria, né?”, conta a liderança. Com a sementes, voltou para a aldeia, mas sua busca não terminou. Creuza foi para Mato Grosso, até o povo Kayabi, com quem conseguiu recuperar a macaxeira e o milho sagrado.

Resgate e cosmologia feminina

Quando contada, a história de resgate das sementes Krahô frequentemente cita Oscar Há’porô, o indigenista Fernando Schiavini, e a Kapéy – União das Aldeias Krahô, mas, muitas vezes, “esquece” a participação de Creuza, uma das primeiras lideranças femininas Krahô depois da colonização.

A cacique sempre apontou a predileção de pessoas brancas por observar e estudar apenas os homens da sua etnia, em vez de olhar para as mulheres que têm uma grande participação no cultivo das roças e na conservação da biodiversidade.

Na cosmologia Mehim, as sementes vieram da estrela Catxêkwyj, uma mulher que desceu do céu e se casou com um Mehim. História que Creuza faz questão de contar.

“Um dia ela [a estrela] chamou ele: ‘vamos lá no mato’. Chegou lá, tinha um cipó escada. Aí ela subiu e sumiu. Ele ficou lá, esperando. Deu meio-dia, deu à tarde, umas duas horas, ele viu balançar o cipó. Levantou e foi lá, aí ela tava trazendo semente de milho diferente, batata, manaíba, inhame e banana”

A estrela também ensinou o povo a cozinhar e a plantar as sementes, que se tornaram sagradas. Depois do resgate feito por Creuza e outros líderes indígenas, a troca de sementes virou um costume e instituiu a feira Krahô de Sementes Tradicionais. Mais que isso, virou política pública, fazendo parte da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.

Resistência indígena e conservação das florestas

A recuperação da biodiversidade, perseguida por Creuza e seu povo, não só alimenta as aldeias, mas também protege as florestas. Um estudo do ISA (Instituto Socioambiental) atestou que terras indígenas e unidades de conservação, onde a ocupação tradicional é permitida, apresentam os maiores índices para regeneração do solo e da vegetação nativa. Isso evidencia o poder do manejo sustentável realizado por povos originários e outras populações tradicionais.

Terras indígenas também são barreiras ao desmatamento. Dados do MapBiomas indicam que, entre 1990 e 2020, essas terras foram os locais mais preservados do Brasil: perderam 1% de vegetação nativa, enquanto que a perda em áreas privadas chegou a 20,6%.

Mesmo se tornando parte central da cultura e agricultura Mehim, as feiras de sementes foram interrompidas em 2013. Foi quando três indígenas morreram ao se deslocar da aldeia Nova até a Kapey, local de encontro do povo, onde aconteceria a 9ª Feira de Sementes da etnia Krahô. O acidente deixou a saúde mental e física da comunidade vulnerabilizada, o que inviabilizou que muitas tradições continuassem. Creuza conta que até hoje, poucas coisas mudaram.

“Começando pela saúde: até agora nem médico tem para saúde indígena. É muito difícil. Não tá vindo remédio, atendimento tá só as enfermeiras, né? Enfermeiro padrão e alimentação adequada não tem, o governo não manifestou”. Creuza tem esperança de que o Povo recupere os direitos de saúde e restabeleça as feiras tradicionais.

Enquanto isso, a cacique continua lutando pelos direitos de seu povo. Nas eleições de 2022, bateu de frente com candidatos que tentaram visitar a aldeia Krahô. Para Creuza, os políticos incentivavam a destruição do Cerrado. Ela foi categórica quando os candidatos ofereceram presentes: “Nós Krahôs precisamos ter o direito garantido na Constituição 1988, nós precisamos é de saúde, educação, nós precisamos de água limpa e de Cerrado em pé”.

 

*Jornalista no IPAM, karina.sousa@ipam.org.br



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