“Se não mudarmos a lógica atual de produção, o futuro não nos espera”

11 de dezembro de 2023 | Notícias

dez 11, 2023 | Notícias

Por Sara R. Leal*

Ludmila Rattis é cientista especializada em desmatamento, mudanças climáticas e seus efeitos no ecossistema. Atualmente, é pesquisadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do Woodwell Climate Research Center. Confira o que ela tem a dizer sobre agricultura regenerativa e seus benefícios.

Esta entrevista foi publicada originalmente na Um Grau e Meio, newsletter com análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade, produzida pelo IPAM.

Leia a edição completa aqui.

Por que que a agricultura convencional deve ser substituída por outros modelos de produção?

Porque temos dois desafios hoje: produzir alimentos para uma população crescente – que vai atingir o nível de 10 bilhões até 2050, senão antes – em um ambiente de mudança do clima.

Existem algumas projeções do governo brasileiro, incluindo a que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento fez em 2017 e 2018, de aumentar a produção de grãos no Brasil, a soja especificamente, em 23% até 2027 e 2028. Essa projeção não leva em consideração a questão das alterações climáticas e dos eventos climáticos extremos que as regiões produtivas do Brasil enfrentam e têm enfrentado com uma frequência maior.

Quando a gente olha para um sistema regenerativo, devido às suas características de maior diversidade, uso menos intensivo de produtos químicos, vê que ele é mais resiliente às mudanças climáticas, produz mais e é mais barato. Essas três soluções vêm para resolver esses dois problemas: aumento da produção a patamares jamais vistos em um ambiente com mudanças climáticas.

Como a vegetação nativa contribui diretamente com a agricultura?

Os primeiros estudos mostrando a ligação da floresta amazônica com a estabilidade climática com a produção de chuva começaram a aparecer na década de 1970. Nessa época surgiram as primeiras simulações e modelos matemáticos. No início da década de 1980, vieram os primeiros grandes experimentos na Amazônia, aumentando cada vez mais a evidência científica de que floresta e produção de chuva tinham tudo a ver.

Nos anos 1990 tivemos o LBA e, a partir dos anos 2000, com os dados de sensoriamento remoto – principalmente do MODIS, que é um conjunto de dados de sensoriamento da Nasa – a gente começou a conseguir modelar o uso e cobertura do solo com as características climáticas.

Em 2015, publicamos uma análise do período ente 2000 a 2012 mostrando que áreas com floresta podiam ser até cinco graus mais amenas na temperatura do que as áreas sem floresta. E agora, recentemente soltamos uma nota técnica para fomentar a discussão acerca do marco temporal. Vimos que a floresta amazônica diminui localmente a temperatura em dois graus, sendo que no sudeste da Amazônia esse efeito é de cinco graus. O Sudeste é a área que está mais desmatada. Isso pode ter várias explicações e, dentre elas, a questão pode ser que a floresta é mais importante ainda para a estabilização climática nas áreas em que ela está perdendo vegetação porque a desestabilização já está em curso, então o que tem de remanescente é cada vez mais importante.

Um pé de soja pode não tolerar 40 graus e, mas se tem uma floresta por perto, aquele extremo de temperatura que em todos os lugares pode estar 40 graus, ali onde tem a floresta pode estar 35 graus e isso pode ser um divisor de águas entre uma agricultura que se desenvolve e uma que se quebra a safra por causa dessa temperatura extrema.

Sem contar na distribuição das chuvas, a diferença entre chover ou não, e a quantidade, pois a gente pode causar chuvas torrenciais de milimetragem muito acima da média por hora. Se chove 6 milímetros na janela de um dia inteiro, o sistema vai absorvendo a água aos poucos, é aquela “chuvinha” de aspersão que chamamos de garoa, ao invés de ser aquela chuva torrencial de 6 milimetros em uma hora que o sistema não consegue absorver toda a água. E o atraso da chuva, porque tem estudos que mostram que as áreas mais desmatadas são aonde a chuva chega mais tarde e isso é determinante para saber se será possível plantar uma safrinha ou não.

Quais são as principais técnicas da agricultura regenerativa?

A primeira seria um sistema que seja diverso do ponto de vista da cultura. Que não se plante só uma coisa, seja temporal ou geograficamente. Se você escolhe plantar só uma cultura agora, o ideal é que, assim que ela seja colhida, você plante outra coisa que devolva nutrientes diferentes para o solo.

Um exemplo de diversidade temporal e geográfica é o ILPF (Integração Lavoura Pecuária Floresta). Nele, o espaço pode ser distribuído entre árvores de crescimento rápido e comercial, como eucalipto e borracha, e plantação de cultura temporária, como soja. Depois da colheita, planta-se pasto para os animais.

As árvores, além de oferecerem sombra, ajudam a ciclar a água, levá-la para a atmosfera, já que as raízes das plantas temporárias são rasas, mais superficiais. Os animais, como o gado, vão pisotear a terra e adubar o solo, importante para as áreas que já não conseguem reter muita matéria orgânica na terra.

A segunda é o investimento em biológicos: controle biológico de pragas, fertilização biológica, fertirrigação…há diversas técnicas que estão surgindo para substituir os químicos da agricultura convencional. Existem testes em que você pega um pouco de serrapilheira, que é o chão da floresta, coloca no biodigestor e multiplica, pois na serrapilheira tem matéria orgânica, fungo, bactérias e microrganismos que vão produzir um monte de fertilizantes superimportantes para multiplicar o adubo, produzindo enzimas para poder, por exemplo, quebrar fósforo e disponibilizá-lo para o solo.

Já a agricultura convencional, com os químicos, mata esses microrganismos: joga-se inseticida, herbicida, carrapaticida, tudo para matar qualquer outro organismo quando, na verdade, quanto mais diverso for o ambiente, melhor.

Para você, o que falta para que a agricultura regenerativa seja amplamente implementada?

Pesquisa, investimento, campanhas de conscientização para mudança de comportamento e aí a gente pensa em políticas públicas para ampliar e ganhar escala. Acho que são esses cinco, nessa ordem.

Caso a gente não mude o cenário atual de produção, o que nos espera no futuro?

Se não mudarmos essa lógica, acho que o futuro não nos espera: ele vai acontecer sem a gente. Podemos até concordar que o desmatamento na Amazônia está caindo e que ele tem cada vez menos a ver com produção de alimento e muito mais com especulação imobiliária. Mas, individualmente, precisamos conversar e conscientizar os produtores de que floresta em pé vale, e vale muito. E essa conscientização não pode ser só por conta de moratória da soja, comando e controle, etc: tem que ser por consciência.

É o mesmo que, no momento em que a soja está em flor, o produtor jogar um secante. Ele não vai fazer isso porque é insano, e desmatar tem que ser tão insano quanto matar a sua produção 20 dias depois que você a plantou porque, no médio e longo prazo, quando você desmata é isso que você está fazendo: comprometendo a sua produção. Jogar o secante agora compromete a produção que você colheria em fevereiro, mas desmatar agora é você comprometer a sua produção no ano em que terá um evento climático extremo, que pode ser o próximo. O futuro já começou. Então não é mais manter floresta para o dia que as mudanças climáticas baterem na sua porta, o dia em que você tiver por exemplo uma onda de calor que bater 40 graus na temperatura: esse dia é hoje.

E as áreas que estão sofrendo mais são aquelas que têm menos floresta em pé, e as que estão resistindo melhor são as que ainda possuem vegetação nativa, que são as paisagens à prova de mudanças climáticas.

Outra coisa é que o Cerrado é tão importante quanto a Amazônia. Quantas vezes será preciso repetir que não tem chuva se não tem Cerrado? Ele é um bioma superimportante para a ciclagem da água. Uma “arvoretinha” do Cerrado tem um sistema radicular profundo e complexo que abastece os aquíferos e isso é fundamental para a irrigação, ciclagem da água. Ou seja: desmatamento no Cerrado é um tiro no pé da agricultura irrigada do amanhã e todo mundo, em especial o setor produtivo, precisa entender.

 

*Coordenadora de comunicação do IPAM



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

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