Por Lucas Guaraldo*
Esta entrevista foi publicada originalmente na Um Grau e Meio, newsletter com análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade, produzida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Inscreva-se para receber a newsletter Um Grau e Meio quinzenalmente em sua caixa de entrada.
Ludmilla Rattis é doutora em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do Woodwell Climate Research Center. gerencia também a Fazenda Tanguro, projeto que busca conciliar produtividade e preservação do meio ambiente.
Os últimos anos foram marcados por quebras de safra causadas por eventos climáticos como secas e tempestades extremas. Além desses fenômenos, quais são os efeitos das mudanças climáticas na produção e na produtividade de alimentos?
Na década de 70 o Brasil era um grande importador de alimentos. A partir daí, institutos de pesquisa como a Embrapa, as universidades e o Instituto de Agronômico de Campinas desenvolveram sementes e adaptaram cultivares para as condições tropicais do clima brasileiro, que é relativamente estável, com um janela grande de plantio que não época ia de agosto até junho, praticamente. Por isso, esses cultivares de ciclos longos que foram desenvolvidos, como a soja, deram muito certo e o Brasil conseguiu plantar mais de uma safra por ano.
Só que o clima ficou cada vez mais instável. Secas muito mais intensas do que tínhamos na década de 70, chuvas irregulares e atrasadas, estiagens na estação chuvosa. Em épocas mais nubladas, quando as plantas criam raízes mais superficiais, essa seca repentina que chega é muito prejudicial porque as plantas não conseguem se preparar. A instabilidade climática impacta diretamente todas as atividades que são realizadas ao ar livre e agricultura, pelo seu porte, é onde sentimos primeiro, e com mais intensidade, os efeitos dessa mudança. A gente vê isso claramente nas grandes propriedades.
Seu estudo publicado na revista Nature em 2021 aponta que cerca de 30% das áreas agrícolas produtoras de milho e soja do centro-oeste já saíram do ideal climático para a produção. Se o ritmo atual for mantido, 70% das propriedades estarão em áreas impróprias para o cultivo nos próximos 20 anos. O que significa estar fora do ideal climático?
A gente quantificou as disponibilidades e a demanda de água para 503 fazendas da região Amazônia-Cerrado. Todas as fazendas, sem exceção, ficaram mais secas. A demanda por água aumentou em todas desde 1970. Dessas 503, 30% estão fora do ideal por enquanto.
Estar fora do ideal climático quer dizer que as sementes estão sendo plantadas em ambientes mais quentes e mais secos do que o clima de 1970, quando elas foram projetadas. A gente adaptou as sementes ao clima do Brasil, mas o clima do Brasil mudou muito nas últimas décadas.
A gente teve essa ideia porque nas sedes de associações de agricultores, vemos mapas de chuva que indicam quanto chove em cada região. Esses mapas já estão totalmente desatualizados por conta das mudanças, mas ainda são usados para decidir o preço das terras. Os produtores compram terras que tinham muita chuva nos anos 90, mas que hoje está seca. São modelos estáticos, mas nosso clima anda cada vez menos estático.
E o que isso significa para o produtor?
Significa um risco cada vez maior. Por exemplo, os produtores costumavam esperar que o solo fosse saturado com água antes de plantar as sementes. Só que cada vez mais frequentemente o solo não encharca o suficiente até a época de plantar. E o que o produtor faz? Ele planta no pó. A gente diz que eles botam a semente e depois o joelho, porque é plantar uma semente no solo e ajoelhar pra rezar pedindo chuva. E, cada vez mais, a chuva não vem. Não dá pra contar com ela.
O calor também é um problema. A gente também avaliou que, em alguns lugares, a temperatura da superfície da terra aumentou 2°C acima da média histórica. Tem lugar que a temperatura das terras chega a 55°C. Se você planta sua semente em uma terra nessa temperatura e a chuva não vem a semente morre frita e se ela vem em menor volume, sua semente cozinha no chão. Isso causa muitas falhas no começo da plantação e força o produtor a plantar. Replantar significa mais gastos com semente, com trator, com funcionários, com insumo. Falha é gasto.
O clima mais instável também tira qualquer segurança mesmo quando a planta já está pronta para colher. Em Campo Novo dos Parecis, há alguns anos, a soja estava pronta pra colher e, em um dia, choveu 40 milímetros em uma hora, aquilo inundou e o produtor perdeu 100% da produção. A gente andava com a caminhonete no meio da plantação e parecia que estávamos no meio do mar.
E o que pode ser feito para ajustar o nosso modelo de produção agrícola? É possível pensar em um desmatamento zero?
A gente precisa criar um sistema mais resiliente. Ou um sistema que sofre menos ou um sistema que, ao sofrer, aguenta mais o tranco. Na hora que vier uma onda de calor, a temperatura não aumenta tanto. Como conseguimos isso? Com floresta em pé.
Na nota técnica que publicamos apontando os efeitos das terras indígenas da Amazônia no clima, a gente mostra que elas diminuem a temperatura em 2°C. No sudeste da Amazônia, onde a situação é mais crítica e mais dinâmica, a temperatura é 5°C menor. Se a gente está prevendo mais ondas de calor, a gente precisa de mais ar condicionado e florestas em pé são aparelhos de ar condicionado.
Mas tem gente que diz que não podemos falar de desmatamento zero porque isso fere o direito de uma pessoa desmatar aquilo que pela lei ela pode desmatar. O problema é que o sistema biofísico da terra não leu o Código Florestal Brasileiro. Se você cortar uma árvore legal ou ilegalmente, o efeito no clima é o mesmo. São 300 litros de água que não vão voltar pra atmosfera por dia e mais a energia que não vai ser gasta e vai ficar te esquentando.
Todo mundo já teve a experiência de estar morrendo de calor no sol, entrar em uma área de floresta e sentir o ar mais fresco, mais úmido e mais agradável. E mesmo assim a gente ainda não tem conseguido ligar uma coisa à outra, achando que florestas não tem nada a ver com o clima.
Quando comparamos a recuperação de áreas degradadas e a abertura legal de novas áreas, a segunda opção parece bem menos trabalhosa. Como lidar com esse problema então?
O desmatamento zero tem seus desafios. Se você tem 10 mil hectares para desmatar legalmente na sua fazenda e você precisa abrir essas áreas para aumentar sua produção, você não vai andar quilômetros para comprar uma nova terra degradada e recuperá-la. A gente precisa de um planejamento local para implementar essas ideias.
Eu tenho a solução para esse dilema? Não tenho, mas a gente também não tem uma solução para as mudanças climáticas que não passe pela proteção das florestas. Eu acho que é mais fácil resolver o problema dos produtores que precisam recuperar áreas já desmatadas para não desmatar mais, do que resolver o problema de passar 152 dias por ano sem conseguir andar na rua em Belém.