O plano de vacinação contra a covid-19 apresentado pelo governo federal não contempla a totalidade da população brasileira. Isso porque um mapeamento realizado em parte do bioma Cerrado, pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e pelo ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), em parceria com a Rede Cerrado, revela a existência de 3,5 vezes mais povos e comunidades tradicionais do que mostram os dados oficiais. O número, não exaustivo, sugere um problema de âmbito nacional.
Mais de 2.300 comunidades foram computadas pelas organizações por meio de oficinas e do diálogo com as populações locais na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Até o momento, a base oficial de dados contabiliza, na região estudada, apenas 667 comunidades. Iniciado em julho de 2018, o levantamento considerou áreas que possuem importância significativa para a conservação do meio ambiente, denominados “corredores prioritários”.
Os primeiros da fila
Povos indígenas aldeados, quilombolas e comunidades tradicionais ribeirinhas estão entre os públicos prioritários de vacinação contra a covid-19, já em andamento no Brasil. Ao nomear explicitamente apenas esses três segmentos, a Lei 14.021/20 deixa outros 25 povos e comunidades tradicionais – número correspondente aos segmentos representados no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e que ainda assim não abrange a totalidade dessas populações – à margem de um plano pouco definido.
No final de janeiro deste ano, o Ministério Público Federal chegou a questionar a pasta de Saúde sobre critérios de escolha e solicitou precisão ao identificar quais povos e comunidades serão efetivamente inseridos na fase emergencial. A despeito da vacinação já ter iniciado em aldeias indígenas do Pará, por exemplo, o plano não estipula prazos e coordenadas para a elaboração estadual de estratégias voltadas a outros segmentos e os deixa sem perspectivas para a imunização.
“Essa falta de definição evidencia ainda mais a urgência em mapear e tornar visíveis tantos outros segmentos espalhados pelo Brasil. Comunidades que estão fora dos dados oficiais e que carecem de prioridade em políticas de proteção e em debates públicos”, alerta a diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar.
Sobre o mapeamento
O projeto de mapeamento de povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares reuniu informações dispersas na literatura e nos dados oficiais sobre a identificação de territórios de povos e comunidades tradicionais no bioma Cerrado. Para além disso, foram realizadas oficinas participativas em municípios estratégicos da região do Matopiba, junto a representantes de comunidades e de organizações locais.
O resultado da iniciativa revelou que as populações tradicionais ainda lutam por seu espaço no mapa. O dado deixa evidente a invisibilidade que permeia a existência de povos e comunidades tradicionais, marginalizados na elaboração de políticas públicas, favorecendo, assim, a consolidação de ameaças reais, como o avanço desordenado do agronegócio e da mineração.
A iniciativa teve apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF), uma iniciativa conjunta da Agência Francesa de Desenvolvimento, da Conservação Internacional, União Europeia, do Fundo Global para o Meio Ambiente, do governo do Japão e do Banco Mundial. Uma meta fundamental é garantir que a sociedade civil esteja envolvida com a conservação da biodiversidade.
Importância
Além de retratar a diversidade do Brasil, mostrar a existência desses povos e comunidades tradicionais é fundamental para a conservação do meio ambiente, em especial do Cerrado brasileiro, bioma estratégico para a manutenção da biodiversidade e dos ciclos hídricos no Brasil.
Garantir a presença desses povos em seus territórios é assegurar a permanência do que resta do Cerrado em pé. Com metade da vegetação nativa desmatada, o bioma concentra 5% de toda a biodiversidade do planeta. Além disso, abriga oito das doze regiões hidrográficas brasileiras e abastece seis das oito grandes bacias hidrográficas do país.