O Observatório do Código Florestal (OCF)1, do qual o IPAM faz parte, repudia a extensão geral do prazo do cadastramento de propriedades e posses rurais ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) até 31 de dezembro de 2017, prorrogável por mais um ano, assim como a prorrogação simultânea para que instituições financeiras restrinjam o crédito agrícola para imóveis rurais sem o CAR. A sanção da Lei 13.295/2016, particularmente o Artigo 4º que altera os Artigos 29 e 78-A da Lei 12.651/2012 e que gera os resultados mencionados acima, configura-se um grave erro histórico cometido nos cem primeiros dias do governo interino que ficará registrado na memória do país.
Em primeiro lugar, esta lei é inequivocamente inconstitucional, considerando o Acordão do Supremo Tribunal Federal, proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.127, do Distrito Federal, segundo o qual “viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo, a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória”2. A referida Lei 13.295/2016 é originada da conversão de medida provisória voltada a legislar sobre crédito para caminhoneiros, a qual sofreu diversas emendas sobre assuntos estranhos à matéria, dentre as quais apenas a prorrogação do CAR sobreviveu ao veto presidencial.
Em segundo lugar, a lei em questão se configura como um claro desrespeito aos mais de 3,26 milhões de produtores rurais que se cadastraram no prazo e demonstraram interesse genuíno em regularizar suas propriedades ou posses, com o objetivo de realizar uma produção rural sustentável e alinhada com os anseios de toda a sociedade. Segundo dados do Serviço Florestal Brasileiro, a área cadastrada atinge aproximadamente 81% de todas as áreas cadastráveis no Brasil, o que demonstra o avanço notável do CAR como instrumento de implementação do Código Florestal, assim como a desnecessidade e incoerência absolutas dessa prorrogação.
A prorrogação do prazo do CAR é ainda uma medida que traz descrédito ao Código Florestal, confusão aos produtores no campo e desconfiança nos mercados compradores da produção agrícola brasileira, em um contexto em que grandes empresas globais buscam eliminar o desmatamento e a ilegalidade de suas cadeias de fornecimento3. Além disso, prejudica a capacidade de o Brasil cumprir suas metas de redução de emissão de gases de efeito estufa4 e sua credibilidade na comunidade internacional. No contexto do novo acordo global do clima, todos os países signatários se comprometeram a executar medidas firmes e urgentes de combate a atividades poluentes. O Brasil navega na contramão da história ao aprovar a Lei 13.295/2016, expressa leniência com a ilegalidade, com a insegurança jurídica e com práticas agropecuárias insustentáveis.
Causa estranheza que após os abertos e firmes posicionamentos contrários à prorrogação por parte das mais importantes instituições e empresas do agronegócio e dos demais segmentos da sociedade, ainda assim, o Congresso Nacional, com sanção da Presidência da República, aprove tal alteração. O Código Florestal é uma ferramenta importante para o Brasil ter uma produção agropecuária mais sustentável, fruto de anos de dura negociação, motivos pelos quais não poderia de forma alguma ser violado pelas autoridades sem uma justificativa com forte amparo científico, legal e político – o que definitivamente não é o caso.
Com sua implementação efetiva e qualificada, o Código Florestal tornar-se-á um possível conciliador de produção, conservação e desenvolvimento social. O Observatório do Código Florestal, apesar da decepção, continua acreditando firmemente e seguirá apoiando os produtores rurais, estados, municípios e agências federais no processo de implementação da Lei.
Para reduzir os danos, é fundamental que o governo federal:
– Implemente o mais breve possível o programa de incentivos econômicos e benefícios à conservação e uma política estruturante de fomento à recomposição de ecossistemas naturais, conforme descrito no capítulo X da Lei 12.651/2012;
– Aprimore as ferramentas e agilize o processo de análise do CAR, em parceria com os estados;
– Ofereça o suporte previsto aos pequenos produtores para realizar o CAR, também em parceria com os estados;
– Avance na regulamentação da Cota de Reserva Ambiental (CRA) e demais mecanismos de compensação ambiental;
– Garanta que a compensação de reserva legal seja prioritariamente realizada em áreas prioritárias para a conservação e o uso sustentável, gerando valor agregado à conservação de nossos ecossistemas;
– Siga a legislação vigente de acesso à informação, dando ampla transparência às informações do Sistema Nacional do CAR;
– Combata qualquer tentativa de novas violações do Código Florestal, a exemplo da discussão em curso no Congresso Nacional para flexibilizar que florestas com espécies exóticas sejam reconhecidas como Reserva Legal5;
– Revise suas metas quanto ao “desmatamento ilegal zero” e se sintonize com a agenda internacional de cadeias produtivas livres de desmatamento a partir de 2020.
[1] O Observatório do Código Florestal (OCF) foi criado em maio de 2013 para promover o controle social sobre a implementação da Lei nº 12.651, de 2012 (Código Florestal brasileiro) e garantir integridade ambiental, social e econômica nas florestas em áreas privadas. A rede é composta por 23 organizações independentes que se juntaram com o mesmo objetivo de promover a efetiva implementação do código.
[2] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4580410. Acessado em 6/6/2016.
[3] Exemplos de compromissos na Noruega; New York Declaration on Forests; The Consumer Goods Forum.
[4] Meta brasileira de redução de emissões de gases de efeito
[5] Está na pauta da Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal o Projeto de Lei nº 06/2016, de autoria da senadora Ana Amélia Lemos. Para que se tenha uma ideia da gravidade, numa primeira estimativa feita pelo Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, aproximadamente 8 milhões de hectares de florestas plantadas poderiam ser imediatamente contabilizados como reserva legal diretamente, ou indiretamente por meio de mecanismo de compensação, reduzindo drasticamente a meta nacional de recuperação.