“Nosso imaginário da Amazônia é baseado em registros feitos por viajantes europeus que não sabiam ler a floresta”

20 de outubro de 2025 | Um Grau e Meio

out 20, 2025 | Um Grau e Meio

Por Lucas Guaraldo*

 

Bruna Rocha, arqueóloga e professora da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará), em Santarém, destaca o papel dos estudos arqueológicos na Amazônia e o que a história da floresta revela sobre os desafios ambientais atuais. A entrevista foi publicada na newsletter Um Grau e Meio, produzida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

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Doutora em Arqueologia pelo Institute of Archaeology da University College London, Bruna é co-coordenadora do Projeto Amazônia Revelada,  iniciativa que busca integrar a pesquisa arqueológica aos conhecimentos tradicionais amazônicos, identificando sítios arqueológicos no bioma e adicionando uma nova camada de proteção à floresta.

Por muitos anos foi ensinado que a Amazônia pré-colombiana era um grande vazio humano. Com as novas descobertas na região, o que podemos dizer sobre o verdadeiro passado da floresta?

Muito do nosso imaginário da Amazônia é baseado em registros feitos por viajantes europeus que não sabiam ler a floresta. Eles só viam uma mata meio indistinta quando, na verdade, várias das áreas ali são matas de sucessão, que teriam crescido em áreas, antes mais abertas, e que concentram uma série de espécies botânicas que tem uma interligação com a espécie humana.

A gente só vai conseguir fazer essa leitura com uma mudança de paradigmas que começa nos anos 80 a partir de uma área do conhecimento chamada ecologia histórica, que alia uma série de disciplinas para entender como sociedades humanas transformaram a floresta ao longo do tempo, tendo uma leitura histórica das paisagens.

Então, com o desenvolvimento de imagens de satélite, no fim dos anos 90 foi identificado, no Alto Xingu, uma série de assentamentos pré-colombianos grandes e interconectados com estradas.

E agora, com essa nova tecnologia do LiDar, que permite levantamentos topográficos em áreas de muito difícil acesso, a gente consegue evidenciar uma série de estruturas, valas, estradas, caminhos que mostra uma floresta interconectada realmente e uma diversidade de formas de vida na floresta e estruturas realmente monumentais que necessitam de organização de trabalho.

Quais eram as características mais marcantes desses povos e comunidades amazônicas? Como era a relação dessas comunidades com a floresta?

Na Amazônia não tem essa abundância de matéria prima rochosa como tem nos Andes e na Mesoamérica. Então, realmente, o que a gente percebe hoje é que a monumentalidade precisa ser entendida em termos amazônicos. A monumentalidade se fez a partir da própria floresta, da domesticação de plantas, do manejo de grandes áreas ao ponto de que não é nem possível falar de “floresta virgem”.

Esse é o grande legado. Se hoje o Brasil é uma potência ambiental diante da COP 30, isso também se deve aos povos amazônicos, tanto no passado, quanto atualmente, através de povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas. Essa sagacidade, esse conhecimento, de convívio com a  floresta é uma das características muito marcantes. A monumentalidade se percebe a partir dessas intervenções na própria terra.

Por que perdurou por tanto tempo essa ideia de que a Amazônia brasileira era “pouco desenvolvida” mesmo após o estudo de outras civilizações nas Américas?

Isso também foi incorporado pelo Estado brasileiro. Getúlio Vargas vai apresentar os usos da Amazônia como um lugar de retirada de recursos naturais, ignorando a presença humana. E essa ideia do vazio demográfico vai ser muito  cristalizada durante a ditadura empresarial-militar em que a Amazônia servia esse propósito de redirecionamento de demandas de reforma agrária do Nordeste e Sul do Brasil. Aí vem o lema “terra sem gente para gente sem terra” e o uso político da Amazônia como um repositório de recursos naturais.

E infelizmente essa visão ainda está conosco. Ainda hoje, se olhamos para os projetos do Governo, passamos ali por essa noção de que a Amazônia precisa ser desenvolvida, ela serve como um corredor logístico ou um lugar de onde se tiram recursos naturais.

Nas outras sociedades da América tínhamos uma materialidade muito marcante de construções urbanas com cidades de pedra, por exemplo. Isso sempre impressionou muito e acabou fazendo com que a intelectualidade brasileira que pensa sobre patrimônio se desinteresse pelo patrimônio brasileiro, até pela comparação com os patrimônios andinos e mesoamericanos.

Isso desenvolve um certo desprezo até pelos povos que viviam onde, depois, viria a ser o Brasil, e tem reflexos nas nossas políticas patrimoniais. Até hoje, se olhamos o que é tombado, uma maioria avassaladora de bens tombados pelo IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] é de construções ligadas a uma herança europeia. Temos pouquíssimos, menos de 10, sítios arqueológicos tombados.

A arqueologia lidou, por muito tempo, com conceitos europeus de civilização e sociedade. Como esses conceitos mudam quando analisamos os povos da América do Sul? É preciso um novo paradigma para entender, de fato, a região?

Sim. Ainda estamos presos a alguns paradigmas formulados em outras partes do mundo, como no Oriente Médio e na Europa, que não se aplicam plenamente à realidade sul-americana. É preciso, portanto, reconstruir esses paradigmas, porque a mega sociobiodiversidade existente na Amazônia não se encaixa nesses modelos explicativos tradicionais. Aqui, a descentralização política é uma escolha, uma opção cultural, que coloca em xeque as narrativas lineares de desenvolvimento que surgiram em outros contextos históricos.

Temos uma ideia de desenvolvimento baseada nos parâmetros da nossa própria civilização: hierarquias, exércitos, desigualdade e burocracia. Talvez seja necessário repensar o que entendemos por “desenvolvimento” ao observar que esses povos — cerca de 10 milhões de pessoas na Amazônia pré-colonial — conseguiram transformar e habitar a floresta por ao menos 15 mil anos, sem degradá-la. Enquanto isso, nós, nos últimos 500 anos, e especialmente nas últimas quatro décadas, destruímos cerca de 10% da cobertura vegetal amazônica. Essa comparação deveria nos levar a uma reflexão profunda.

Como entender o passado dos povos amazônicos nos ajuda a compreender a situação atual da floresta?

A situação atual da floresta mostra que as áreas melhor preservadas são justamente aquelas habitadas por povos indígenas e comunidades tradicionais. Essas pesquisas arqueológicas nos permitem ler o passado de forma viva, mostrando como sociedades antigas conseguiram concentrar recursos e tornar a floresta um lugar habitável e produtivo por milênios.

Esse entendimento também é fundamental para reconhecermos a história de certas plantas essenciais à humanidade. Espécies como mandioca, pimentas, abacaxi e diversas plantas medicinais foram domesticadas por esses povos e hoje estão espalhadas pelo mundo. Cada uma delas é resultado de muitas gerações de experimentação, manejo e transmissão de conhecimento.

Conhecer esse passado é essencial para combater a ideia da Amazônia como uma tábula rasa que precisa “receber” desenvolvimento. Os modelos de desenvolvimento impostos de cima para baixo, como as tentativas de Henry Ford em Fordlândia e Belterra, ou projetos de barragens, mineração e estradas, têm mostrado, repetidamente, que não funcionam. Falham porque ignoram a governança local e o conhecimento acumulado por quem sempre viveu e cuidou desse território.

Como o desmatamento tem afetado a descoberta e a preservação de novos sítios arqueológicos no bioma? O que pode ser feito para proteger esses territórios?

Em um primeiro momento, o desmatamento possibilitou a identificação de geoglifos no Acre, há cerca de 20 anos, quando durante um sobrevoo foram reconhecidas formas geométricas que não poderiam ser vistas do solo. No entanto, esse mesmo desmatamento que permitiu a visualização inicial é também o responsável pela destruição desse patrimônio.

As próprias árvores são consideradas vestígios arqueológicos, pois existe uma ligação inseparável entre cultura e natureza. Essa destruição, portanto, afeta diretamente o nosso patrimônio biocultural. Além disso, retrocessos legislativos, como a nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental, têm contribuído para fragilizar ainda mais a proteção desse patrimônio.

O primeiro passo essencial para garantir a preservação é o reconhecimento dos territórios tradicionais. A criação de terras indígenas, territórios quilombolas, reservas extrativistas, unidades de conservação e áreas de reforma agrária coletiva são instrumentos fundamentais e eficazes para assegurar a proteção do patrimônio histórico e cultural.

Do ponto de vista dos arqueólogos, é fundamental registrar o maior número possível de sítios arqueológicos, já que, segundo a nova legislação, apenas os sítios registrados no IPHAN serão considerados nos processos de licenciamento ambiental. Essa é uma preocupação especialmente grave na Amazônia, onde ainda existem vastas áreas sem pesquisa arqueológica.

E como é feito esse registro hoje?

Tradicionalmente, o registro é feito por meio do preenchimento de um formulário com coordenadas geográficas, envio de fotografias e uma descrição do local. No entanto, estamos em diálogo com o IPHAN para viabilizar o registro de sítios a partir de dados LiDAR, já que muitas áreas têm acesso extremamente difícil e nem sempre conseguimos chegar fisicamente até esses locais para coletar informações. Essa inovação é ainda mais urgente diante das mudanças no licenciamento, que podem levar à perda de sítios arqueológicos ainda desconhecidos, ameaçados por obras e empreendimentos.

 

Jornalista do IPAM, lucas.itaborahy@ipam.org.br*



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