“Não basta manter a área úmida, tem que manter o Cerrado típico também”

5 de fevereiro de 2024 | Notícias

fev 5, 2024 | Notícias

Lucas Guaraldo*

Em entrevista publicada na newsletter “Um Grau e Meio”, Cássia Munhoz, professora do departamento de Botânica da Universidade de Brasília e especialista em áreas úmidas, destaca a importância dos ecossistemas e alerta para os riscos de sua destruição.

Qual é o papel das áreas úmidas no Cerrado?

As áreas úmidas são de importância global porque é justamente a umidade no solo que age como filtro ambiental para selecionar espécies. São várias as espécies de fauna e flora endêmicas a essas áreas, que também desempenham serviços ecossistêmicos fundamentais. No Cerrado, as nossas áreas úmidas ocorrem onde o lençol freático é superficial e o solo é mal drenado. Temos campos úmidos, veredas e até florestas que são inundadas. 

Essas áreas inundadas do Cerrado são fundamentais para o abastecimento hídrico do Brasil. A gente sabe que as nascentes da maior parte das bacias hidrográficas estão no Cerrado, mas temos que entender que essas nascentes são justamente as áreas úmidas. 

Elas também têm uma importância cultural muito grande. “Veredas”, por exemplo, significa “caminho” e ganhou esse nome por causa das comunidades da região que usavam os caminhos dos buritis para atravessar o Cerrado com seus rebanhos porque é onde tem recurso, tem água e alimento. 

Perder essas áreas úmidas significa perder água, perder carbono, perder serviços ecossistêmicos e, por fim, perder a fauna e a flora que são dependentes dessas regiões. Temos também comunidades tradicionais que dependem dessas áreas úmidas para a alimentação, geração de renda e abastecimento. 

Como essas áreas são afetadas pelas mudanças climáticas?

A gente sabe que muitas previsões climáticas indicam uma redução drástica das chuvas e um aumento nas temperaturas do Cerrado. Isso compromete diretamente o balanço hídrico dessas áreas. O solo seca, isso prejudica o estoque de carbono e, claro, afeta a disponibilidade de nicho das espécies que estão adaptadas a essas áreas. 

No Cerrado, as áreas úmidas também são predominantemente abertas e, quando a água diminui, perdemos o filtro que impedia a chegada de árvores maiores, que preferem ambientes mais secos. Quanto mais essas áreas se adensam, mais seca fica a áreas e mais árvores invasoras nascem, formando um dossel que mata as gramíneas e plantas menores dessas áreas, como o capim dourado e outros capins típicos do Cerrado. 

Por exemplo, desenvolvemos um trabalho aqui na UnB numa escala de 14 anos que mostrou que os lençóis perdem, em média, 60 centímetros. Isso é uma diminuição muito grande. E o que aconteceu com essas áreas? Eram veredas lindas e cheias de água que hoje estão secas e que perderam sua variedade de plantas por conta de espécies invasoras. 

Esse ressecamento facilita a entrada do fogo, que para essas áreas é especialmente devastador porque são espécies sem nenhuma adaptação ao fogo. Especialmente no final da época de secas, temos visto cada vez mais incêndios de grandes proporções atingindo essas áreas. 

Como isso prejudica o estoque de carbono?

O solo dessas áreas tem muita matéria orgânica e, com isso, ele guarda muito carbono. Quanto mais utilizadas por humanos, mais a saturação de água diminui e essa matéria orgânica se oxida e perdemos as reservas de carbono no solo. Perdemos biodiversidade e perdemos carbono estocado no solo. 

A gente pensa que por ter árvores maiores, uma área estoca mais carbono, mas isso não é necessariamente verdade. A perda dessa vegetação rasteira e dos seus sistemas radiculares, suas raízes, afetam o armazenamento do carbono inorgânico, que fica muito profundo no solo. Esse é um carbono que ficou milhões de anos sendo estocado nesse solo e essas plantas com raízes mais profundas aumentam a acidificação da área em camadas mais profundas, facilitando a perda desse carbono para atmosfera. 

Temos poucos estudos sobre a dinâmica do carbono nessas áreas e temos poucas informações sobre a dimensão do que ocorre nesse armazenamento nessas áreas úmidas que ressecam. 

Aqui no Cerrado nós conhecemos o ciclo de chuvas e secas. Podemos dizer que quanto mais tempo uma área úmida passa coberta de água durante o período chuvoso, mais carbono ela estoca.  Da mesma forma, quando elas estão secas, perde-se carbono. Como ressecamento das áreas úmidas do Cerrado, esses ecossistemas podem se tornar importantes emissores de carbono no futuro.

Hoje, quais são as políticas de proteção para áreas úmidas no Cerrado?

A Lei de Proteção da Vegetação Nativa Brasileira, chamada de Código Florestal, protege as áreas úmidas, mas ela tem diversos problemas de interpretação. Hoje existe uma dificuldade na aplicação da legislação por conta de uma padronização e entendimento do que são áreas úmidas. 

A Lei das Áreas Úmidas, por exemplo, define que essas áreas têm que ser protegidas, como o entorno das veredas. Mas veja como o texto está mal escrito: a lei fala que os 50 metros além da área de inundação só que ele não fala que tem que proteger a área úmida ao redor da vereda. A nossa legislação não conseguiu padronizar sistematicamente as áreas úmidas no Brasil e isso cria diferentes interpretações em cada estado e alguns são mais rígidos do que outros. 

O ministro Herman Benjamin do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) disse que todas as áreas úmidas devem ser entendidas como protegidas, independente da sua nomenclatura, mas essa interpretação está muito longe de ser uniforme na jurisprudência e na prática administrativa.

O que pode ser feito para proteger essas áreas?

Não basta manter a área úmida, tem que manter o Cerrado típico também. Claro que a chuva que cai é muito importante para o nível de água que encontramos nessas áreas úmidas, mas a condição do Cerrado ao redor também é fundamental. 

A umidade no solo dessas áreas é mantida durante o período seco, principalmente, pela água que alcança o lençol freático através da infiltração promovida pelas plantas de Cerrado que estão do lado das áreas úmidas.

As principais ameaças às áreas úmidas hoje, para além das mudanças climáticas, são o avanço descuidado da agropecuária sobre essas áreas e a falta de uma gestão de bacias hidrográficas que protejam as nascentes de fato. Temos que aceitar essa decisão do STJ e a decisão do ministro para fazer com que a lei fosse cumprida da mesma forma para todas as áreas úmidas. 

Jornalista do IPAM, lucas.itaborahy@ipam.org.br*

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