Por Camila Santana*
“A energia do corpo muda quando chego no Cerrado. A natureza é muito importante para a nossa saúde física, mental e espiritual”.
Estar na presença de Lucely é um convite a conectar-se com a natureza. De fala mansa e olhar profundo, a quilombola de Mineiros, Goiás, cativa com sua paixão pelo Cerrado e riquezas que dele provém. Não à toa, inicia as reuniões das quais participa com um ritual: pergunta aos participantes sobre a planta favorita. Neste momento de reflexão, distribui essências ou ramos, perfumando a sala com o cheiro das matas. Com as energias renovadas, as atividades prosseguem.
Lucely Morais Pio aprendeu com sua avó Maria Bárbara de Morais, aos cinco anos de idade, as propriedades de cura de cada ramo, folha e flor do Cerrado. Além dos saberes herdados, buscou especialização formal por meio de cursos de medicina tradicional. Hoje, aos 60 anos, seu legado inclui a autoria de publicações como a Farmacopeia Popular do Cerrado, com a listagem das espécies medicinais e formas de manejo, e do Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado.
“O Cerrado é alimento e cura”, comenta, sobre a importância do bioma. Dedica a vida à proteção desse tesouro medicinal. Integrante de instituições como a Rede Cerrado e a Articulação Pacari, Lucely mobilizou a comunidade para transformação de um antigo canavial, localizado na área que herdou da avó, em um bosque com espécies nativas onde construiu um espaço agroecológico com frutas e plantas medicinais. Hoje são encontradas ali 170 espécies frutíferas e medicinais.
Já no Centro de Plantas Medicinais do Cedro, mais de 450 espécies nativas foram catalogadas com ajuda de Lucely e outras raizeiras da comunidade, que as utilizam para fazer os medicamentos em forma de xaropes, pomadas, sabonetes, pílulas, óleos e garrafadas.
Lucely integra a representação brasileira junto ao DGM Global (Mecanismo de Doação Dedicado a Povos Indígenas e Comunidades Locais), fundo que apoiou a Comunidade do Cedro na recuperação de nascentes do território. “Antes não víamos água em alguns pontos do quilombo. Agora, três anos depois, após cercar e reflorestar com espécies nativas, vemos os olhos d’água jorrarem”, conta.
“A minha paixão é plantar. Não penso em criar gado ou fazer outra coisa nestas terras que não seja recuperar o Cerrado que um dia foi cana-de-açúcar e roça”, reafirma. As iniciativas transformaram totalmente a paisagem do quilombo, que começou em 1830 com a chegada do tataravô de Lucely, o ex-escravizado Chico Moleque. Após conseguir a alforria, saiu de Minas Gerais e instalou-se com a família a 420 km da capital Goiânia, Goiás. Aos poucos, outros escravizados foram chegando. Atualmente, são 170 chácaras onde vivem de seis a oito famílias em cada.
Transmitindo os saberes
Defensora do Cerrado, a raizeira acredita que a transformação virá das crianças. Faz questão de passar a sabedoria tradicional das plantas que curam para as gerações mais novas. Dos oito netos, seis a acompanham na coleta nas matas. Os outros dois ainda são bebês, mas ela garante que logo seguirão seus passos.
No território, todos os anos Lucely Pio recebe alunos de duas a três escolas da região para ensinar o modo de vida de respeito à natureza. “São elas que vão ser os médicos, professores, juízes no futuro e acabam educando os pais em casa também”, acredita.
As mulheres compõem a outra frente de transformação na qual atua. Na Roda de Mulheres, ela promove um trabalho de saúde do corpo, mente e emocional. Considera o corpo um território santo e, por isso, valoriza a confiança e o poder feminino na sociedade. “Não acredito nesta marca que a sociedade nos colocou de mulher guerreira. Na verdade, esta é uma mulher sobrecarregada, escrava. Não queremos ser nenhuma das duas”, completa.
Se as palavras transmitissem cheiro, as desta entrevista exalariam alecrim, erva da paz e da alegria. A planta favorita de quem escreve sobre esta conversa com a guardiã do Cerrado Lucely Morais Pio.
*Analista de Comunicação do IPAM, camila.santana@ipam.org.br
📸 Valdir Dias/CAA-NM