“Houve uma inserção do debate climático em pautas de guerras culturais”

1 de abril de 2024 | Um Grau e Meio

abr 1, 2024 | Um Grau e Meio

Por Bibiana Garrido*

Em entrevista publicada na newsletter “Um Grau e Meio”, a pesquisadora Priscila Medeiros, professora do curso de Jornalismo e da pós-graduação em Ciência da Informação na UFAL (Universidade Federal de Alagoas), explica o fenômeno da desordem informacional e as características da desinformação.

Leia a edição 23 da “Um Grau e Meio” clicando aqui.

A produção é gratuita e quinzenal, de autoria do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), com abordagem especializada e análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade.

IPAM: Desinformação e negacionismo são a mesma coisa?

Prof. Priscila: O negacionismo pode ser incluído dentro da desinformação, mas a desinformação vai além. Quando a gente fala em desinformação, é toda a desordem informacional que a gente vive diante desse novo ecossistema, que acaba sendo intensificado por essas mídias que a gente tem hoje, mas sempre existiu.

Qualquer pessoa tem acesso a publicar conteúdo e ter visibilidade. Por conta disso, a gente teve inúmeros ganhos, por exemplo, vários grupos que eram invisibilizados e não tinham voz nas mídias tradicionais, passaram a ter; mas também teve aspectos negativos, porque a comunicação perdeu o controle, a mediação.

A gente pode ter um conteúdo desinformativo que não é falso, por exemplo, mas tem questões de contexto. É um conceito difícil da gente definir.

O conceito mais clássico talvez seja o fenômeno da desordem informacional, dividido em três: 1) desinformação: informação falsa com a finalidade de prejudicar alguém ou um grupo; 2) informação incorreta: inverídica, mas sem intencionalidade; e 3) má informação: apesar de verdadeira, está ali para prejudicar, podendo ser uma notícia velha ou tirada de contexto.

A desinformação aumentou depois da pandemia de Covid-19?

No debate climático, a informação incorreta já existe há muito tempo. O negacionismo também é bem anterior a 2016, que é quando passa a aparecer mais globalmente essa questão de desinformação. Foi um ano de disputa presidencial nos Estados Unidos, e a primeira experiência mais forte e política de uso orquestrado de conteúdo falso.

A partir daí, as pesquisas começaram a surgir de forma mais pronunciada. A gente passa a ter campanhas que trabalham com a desinformação, e hoje em dia é a coisa mais comum.

No Brasil, esse fenômeno começa em 2013, com a polarização afetiva, e isso tem uma relação próxima com a desinformação. Afinal de contas, a desinformação é muito menos uma questão de educação, ou de educação para a mídia, e é muito mais algo ideológico. Está relacionada mais fortemente a crenças anteriores do que com fatos.

Antes das mídias sociais, a identidade não estava associada dessa maneira à ideologia política. Isso torna difícil agir com racionalidade, talvez, como algo próximo do torcedor de futebol. Esse contexto, propício à desinformação, fica muito claro quando entramos na questão climática.

Houve uma inserção grande do debate climático em pautas de guerras culturais. Até pouco antes da pandemia, em 2018, pesquisas mostravam que a maioria dos brasileiros sabiam que as mudanças climáticas eram causadas pelos seres humanos.

A desinformação implantou a resistência à vacina no Brasil, sendo que antes da pandemia o país era exemplo de cobertura vacinal. Além do comportamento antivacina, vimos a implantação do negacionismo climático. São pautas muito comuns nos Estados Unidos e que não eram muito fortes no Brasil.

Conforme seus estudos, quais são os discursos nas mídias sociais brasileiras que atrasam ou impedem a ação climática e como se organizam? Há outros impactos da desinformação?

O principal impacto da desinformação é desmobilizar a opinião pública em torno de um tema urgente. A gente fala muito do negacionismo porque ainda é muito presente nas mídias sociais, sobretudo aquele que vai para um debate ideológico, conspiracionista.

Mas a literatura vem mostrando outros tipos de discursos, porque quanto mais evidências das mudanças climáticas, mais difícil fica ser negacionista. Então, muitos discursos não necessariamente as negam, mas buscam impedir qualquer medida efetiva.

Em uma classificação desenvolvida na Universidade de Cambridge, há o discurso com transferência de responsabilidade (que joga para outra pessoa/grupo a resolução); individualização (que desvia o caráter político e coletivo da questão); e de tom apocalíptico (que diz “não tem mais jeito”), por exemplo.

São vários discursos que, por mais que não estejam negando a realidade das mudanças climáticas, estão colocando empecilhos e entraves para que inexista uma tomada de atitude.

O que – ou quem – são os atores, sistemas e a infraestrutura considerados em sua pesquisa como centrais para compreender o fenômeno da desinformação?

A desinformação hoje só tem o alcance que tem por conta dessa infraestrutura por onde ela circula, que são as plataformas. E as plataformas são pouquíssimo responsabilizadas pelo tipo de conteúdo que circula ali.

Elas costumam alegar, em suas defesas, que não têm um papel editorial, que são só um meio de publicação. Mas a gente sabe que elas têm seus próprios sistemas de recomendação de conteúdo, a partir dos algoritmos, e são esses algoritmos que escolhem o que vai ter visibilidade, então, isso é uma escolha editorial.

Os algoritmos de recomendação acabam fazendo que alguns usuários sejam radicalizados em suas crenças, e não são revelados por uma questão de propriedade intelectual.

A internet é o principal meio de difusão da desinformação ou o “boca a boca” ainda cumpre grande parte desse papel?

A grande questão das mídias sociais é o alcance. Uma mensagem pode atingir milhões de pessoas. O que a gente sabe, também, é que nossos ambientes sociais vão influenciar nossas questões ideológicas.

As pessoas estando socialmente isoladas em grupos ideológicos, é muito mais fácil que a crença na desinformação seja cristalizada: a reação vai ser achar que é mentira, inclusive, o trabalho de checagem de fatos. Você vai duvidar do mensageiro, se você já está apegado à determinada mensagem.

Se você circula em diversos ambientes, é mais fácil você se questionar mais. Mas a polarização afetiva criou uma lógica de imposições ideológicas nos grupos, e isso tem a ver com o pertencimento.

Há ainda o uso de nossos dados comportamentais. Os anúncios são vendidos com base tanto em informações geográficas, gênero, idade, bem como o tipo de página que a gente curte, ou os termos de busca que a gente usa.

Então é muito fácil construir perfis psicológicos de usuários e fazer um tipo de desinformação que seja personalizada para quem vai ter mais chances de acreditar. Isso complexifica a questão da desinformação, porque cada vez mais essas plataformas têm mais dados sobre a gente, facilitando o desenvolvimento de novas formas de nos afetar.

Como resolver o problema da desinformação?

Não tenho dúvidas que é importante que as pessoas aprendam a identificar o que é uma fonte confiável, ou como checar a informação em mais de um lugar. Mas, ao mesmo tempo, isso não escapa da questão ideológica.

Também não é ignorância: várias pesquisas já mostraram, inclusive uma de minha autoria sobre a desinformação acerca das vacinas durante a pandemia, que não necessariamente o nível de educação promove diferenças na crença em desinformação.

A gente precisa ampliar o debate, eu também não tenho as respostas. Mas se a mídia tradicional é regulamentada, por que as plataformas não poderiam ser?

Para ter uma propaganda na televisão há uma série de regras. Mas, nas plataformas, fazem o que querem. Vemos anúncios de golpes, de remédios “milagrosos” sem nenhum efeito, e ninguém é responsabilizado.

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*Jornalista de ciência do IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br
Foto de capa: Leonardo André/UFAL



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