“É um triste capítulo da história do Brasil”, diz Ivo Makuxi sobre marco temporal

2 de outubro de 2023 | Notícias

out 2, 2023 | Notícias

Por Bibiana Alcântara Garrido*

Esta entrevista foi publicada originalmente na Um Grau e Meio, newsletter com análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade, produzida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

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Ivo Makuxi é advogado do CIR (Conselho Indígena de Roraima). integra a Rede de Advogados Indígenas da Amazônia brasileira, pela Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira); a rede de advogados da Apib; e uma rede internacional de advogados defensores do meio ambiente. Aos 33 anos, é uma das lideranças globais nomeadas pela Fundação Ford.

O tema da edição foi o marco temporal das terras indígenas.

Ivo Makuxi apresentou sustentação oral no STF durante julgamento do marco temporal das terras indígenas (Reprodução)

 

Em sua sustentação oral no STF, você disse que a tese do marco temporal significa a “continuação de uma ideia colonizadora sobre os povos originários”. Como o resultado do julgamento na Corte se aproxima ou se afasta dessa ideia?

É muito histórica essa interpretação da Constituição por parte do Supremo, da atual composição dos ministros, de aplicar o texto da Constituição que não recepciona o marco temporal. É uma vitória muito grande. Mas ainda precisa avançar muito na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas. Não há de fato uma efetividade no cumprimento do texto constitucional na integra; é um grande passo, mas precisamos avançar mais ainda. O próprio Supremo precisa reconhecer os direitos dos povos indígenas, principalmente os direitos sociais, partindo da garantia do direito à terra.

O PL 2903 tem o marco temporal como um de seus componentes. Com a aprovação no Senado, qual veredito que se sobressai?

Primeiro, a gente precisa entender que a Constituição fala que os poderes são harmônicos. Nós tivemos a decisão do Supremo Tribunal Federal dentro de um recurso extraordinário, que trata do caso Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ. E o Supremo interpretou a Constituição e julgou inconstitucional, ou seja, é contra a Constituição estabelecer um marco temporal para as terras indígenas no Brasil. A decisão vai ser publicada em breve, elencando, inclusive alguns entendimentos.

Em seguida, ocorreu o que no Direito a gente chama de um efeito backlash, quer dizer, uma reação à decisão do Supremo, em parte, da bancada ruralista, de aprovar em regime de urgência o antigo projeto de lei 490/2007, que hoje tem o número de 2903/2023, e que vai agora receber a numeração de uma lei, se assim o Presidente da República entender.

A gente viu, inclusive, que não era só marco temporal que eles queriam aprovar, porque o próprio projeto de lei estabelece critérios para dizer se o indígena vai continuar tendo sua terra ou não, além de desrespeitar os tratados internacionais de direitos humanos que falam sobre os direitos dos povos indígenas, principalmente, do direito à consulta que a Convecção 169 estabelece, que é inclusive lei no Brasil e tem status supralegal. Tudo isso está sendo visado, violentado, além dos direitos fundamentais dos povos indígenas: de organização social, línguas, costumes, autodeterminação e autonomia.

Esse projeto de lei atende somente às pessoas que não têm interesse em garantir o bem viver, de respeitar os direitos constitucionais dos povos indígenas, com esse argumento de que traz insegurança jurídica. Isso é uma falácia, não existe isso. O que é segurança jurídica para nós, indígenas e advogados que atuam na defesa dos direitos dos povos indígenas? É cumprir o que a Constituição estabelece, é o que o Supremo trouxe.

Então, a aprovação desse projeto de lei foi uma reação à decisão do Supremo, que enterrou o marco temporal e julgou inconstitucional. O projeto de lei aprovado agora, além do marco temporal, traz outras violências contra os povos indígenas, por exemplo, a retomada de áreas reservadas se os indígenas perderam seus traços culturais; contato forçado com povos isolados, povos autônomos ou povos livres, como chamamos; libera plantios transgênicos em terras indígenas. Além de retirar o direito de consulta de povos indígenas para a construção de empreendimentos, hidrelétricas, rodovias. Uma clara violação ao direito básico e fundamental da consulta aos povos indígenas.

Mais do que isso, esse projeto de lei quer impor um modelo de desenvolvimento econômico nacional, a forma de organização da sociedade não indígena, para as terras indígenas, e isso a Constituição não reconhece. Porque lá no artigo 231 fala que são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que, tradicionalmente, nós ocupamos. Cabendo à União demarcar, proteger e fazer respeitar.

Se quisessem garantir segurança jurídica, eles estavam aprovando uma lei para que a União destinasse recurso para garantir a demarcação das terras indígenas, a proteção dessas áreas, que a Constituição traz, tanto da vida dos povos indígenas, das comunidades, dos territórios, mas também criando políticas públicas específicas para a sociedade indígena a partir de um diálogo. Porque não conseguem entender agora que a Constituição abriu um novo ordenamento jurídico de respeito, de diálogo com as minorias, como é o caso dos povos indígenas, para que não acontece mais o que vem acontecendo ao longo dos séculos, que é uma violência, uma imposição de políticas por parte dos militares, inclusive.

É uma mentalidade de que o que é melhor para os povos indígenas é o que não indígenas decidem, não respeita a escuta, o diálogo e a consulta. É um triste capitulo da história do Brasil, da nossa jovem democracia, do Estado Democrático de Direito.

Caso a tese entre em vigor, contribuiria para um “processo de extermínio” dos povos indígenas no Brasil, em sua avaliação na 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Que outros fatores ainda perduram e de que forma podem ser revertidos?

Eu, particularmente, defendo que por trás de tudo isso, das proposições legislativas, de tentar criar teses… há um discurso de ódio contra os povos indígenas. Então você continua incitando a sociedade não indígena, a partir de falas, que ecoam inclusive no Supremo Tribunal Federal.

Falas para atacar os povos indígenas. Um recado claro a grupos que tem interesse de explorar terras indígenas, retroceder direitos indígenas, que acaba dando ideias a parlamentares para questionar a própria existência da sociedade indígena; colocando como privilégio, mas não é privilégio, são direitos básicos fundamentais; alimentando o discurso de ódio, o racismo e a discriminação contra povos indígenas.

Isso cria um cenário de medo e de perseguição diante de toda essa violência que povos indígenas já sofrem. A gente sente o efeito, de pessoas que começam a repetir essas narrativas e que tentam dar razão a esse discurso. Então a gente tem que se desdobrar mais ainda para o combater discurso de ódio que avança e se fortalece, e que leva a práticas de crimes de violência contra povos indígenas. Essas narrativas contra povos indígenas enfraquecem a luta pela democracia, pela igualdade, e ferem nossa dignidade enquanto seres humanos, enquanto cidadãos brasileiros que fazem parte de uma sociedade. E acaba fechando espaços para nós.

O CIR representa 36 terras indígenas em Roraima, incluindo Raposa Serra do Sol. Quais os aprendizados e legados dos mais de 50 anos da organização?

Eu atuo como advogado do CIR há mais de cinco anos. Atuei diretamente nesse processo do marco temporal, em processos de demarcação de terras indígenas, também de reestudos em Roraima. Então nós estamos na linha de frente, sujeitos a ataques pela nossa própria atuação enquanto advogados indígenas. Acaba nos colocando em situações que nos desgastam e nos colocam, não só advogados, em extrema vulnerabilidade na atuação de defesa dos diretos indígenas, direitos básicos e direitos humanos.

São 32 terras indígenas demarcadas, homologadas e registradas, que correspondem a cerca de 46% da extensão territorial do Estado de Roraima. Outras quatro estão pendentes de demarcação: Arapuá, Pirititi, Largo da Praia e Anzol. Além de 23 pedidos de reestudo das áreas demarcadas durante a ditadura militar, e lá em Roraima a gente atua na garantia desses direitos, principalmente direito à terra.

O CIR é uma organização de referência que nunca se vendeu, não negocia direitos. De forma muito sábia, as lideranças têm conduzido a organização e planejando os próximos 50 anos. São diversos ataques, é uma das organizações mais atacadas no Brasil, já teve várias ações judiciais, mas continua resiliente, se reiventando. Agora, dando oportunidade para os profissionais indígenas que têm o compromisso com a coletividade, com a causa indígena, como advogados, agrônomos, engenheiros, preparando a juventude indígena para esses debates, tanto na esfera política, jurídica, nos fortalecendo também economicamente para enfrentar esses desafios.

Mas também planejando nosso futuro para o bem viver coletivo das comunidades indígenas, diante de toda essa tentativa de imposição a modelos que nós não aceitamos e que nos fazem mal, nos escravizam e nos enfraquecem enquanto pessoas que vivem nessa situação de respeito com a natureza e o ambiente onde nós estamos inseridos. E nós também somos defensores de tudo isso.

O CIR tem esse protagonismo reconhecido internacionalmente. A gente espera que nos próximos anos possa estar mais fortalecido, com mais parceiros, conseguindo mais projetos, sempre mantendo o diálogo, inclusive com o Estado brasileiro. A gente continua acreditando na democracia e no Estado Democrático de Direito, porque sem democracia não há respeito aos direitos dos povos indígenas.

Por que escolheu trabalhar como advogado?

Eu trabalho com povos indígenas há mais de 10 anos, até hoje faço trabalhos voluntários em paralelo ao meu trabalho. Eu senti na pele como é o tratamento aos povos indígenas, o preconceito e a discriminação que existe.

Quando mudei para a cidade vivenciei tudo isso. Comecei a fazer trabalhos voluntários aos 19 anos e queria fazer mais… eu nunca rebati os ataques, nunca respondi com violência da forma que as pessoas faziam, mas eu falei que eu queria ajudar mais o meu povo a acessar os direitos para que sejamos respeitados enquanto seres humanos. Por isso, optei por fazer Direito, como forma de fortalecer a defesa dos direitos e avançar na efetivação desses direitos.

Eu queria conhecer todas as leis que amparassem, organizassem a sociedade e garantissem os direitos indígenas. Durante esse período, conheci várias lideranças que sempre botavam fé no meu trabalho, e me convidaram a ser alguém da organização. E quando eu me formei, eu já conhecia a Dra. Joenia [Wapichana] e ela me convidou para assumir o lugar dela, depois que ela foi se candidatar a deputada federal na época.

Assim que eu saí da faculdade eu aceitei e continuo atuando como advogado do CIR, por causa desse chamado que não foi só da Dra. Joenia, mas de várias outras lideranças. Foi um desejo da ancestralidade. Tudo isso vem num momento de fortalecer a causa, a luta, e estou muito feliz de estar cumprindo minha missão.

Tenho falado com a juventude também, para fazer a juventude acreditar que nós podemos ser advogados sem deixarmos de ser indígenas, e que todos nós somos importantes para a nossa causa, que precisamos nos formar também. Conhecer a academia, ter acesso ao conhecimento ocidental, mas sem deixar de complementar com os nossos conhecimentos tradicionais, sempre ouvindo as nossas lideranças, que tem uma experiência de vivência. Agradeço muito a eles também.

Por ser indígena, eu aceitei atuar como advogado, sabendo da minha capacidade de contribuir mais, por meio da advocacia como uma ferramenta de luta e política. Chegando até o Supremo Tribunal Federal para lutar contra o marco temporal também. Uma experiência boa, mas presenciei muita violência contra os povos indígenas que a gente sabe que ainda existe, persiste, e a gente não sabe até onde vai.

Quais seus planos e sonhos para o futuro?

Eu quero continuar estudando. Existem dois caminhos para mim enquanto profissional: continuar na advocacia, buscar mais estudos nas melhores universidades do mundo e abrir as portas, buscar espaço para a juventude indígena, para que possam, de fato, acessar esses conhecimentos e voltar para a base fortalecendo a nossa luta; ou contribuir com a formação dos jovens indígenas no meu Estado, na Amazônia, no Brasil, outros países, ser referência para a juventude e dizer que eles podem, também, que eles valorizem a luta na base, mas que tenham uma visão global. Sensibilizar sobre a importância da luta, porque além de ter o impacto local, tem o impacto internacional.

Depois, buscar outros espaços de avançar mais, talvez politicamente, no mundo jurídico, ou em algum trabalho internacional para influenciar as decisões do Brasil em relação aos direitos dos povos indígenas, que é o que eu faço de alguma forma. Então, o sonho é continuar estudando, me formando e contribuir com a formação da juventude indígena, principalmente na parte jurídica, é um compromisso que assumi, inclusive, com o povo Yanomami, de formar advogados Yanomamis. É um compromisso que assumi enquanto Makuxi. Eu quero contribuir, porque também é parte da nossa história e dos nossos princípios de compartilhar coisas boas com outros povos, de fortalecê-los também. Como advogado, posso contribuir muito com os povos, com a experiência do CIR para outros povos se organizarem melhor. Isso eu quero fazer também, levar para fora toda essa experiência que nós temos em Roraima.

Sobre a nossa existência e o nosso futuro, a gente precisa refundar a nossa República. Numa linguagem mais figurativa: refundar as bases da República e do Estado Democrático de Direito, pintados com urucum e jenipapo. E aí a gente vai continuar na evolução da própria existência da sociedade.

O Brasil é um pais tão rico, o brasileiro não conhece o Brasil que existe, o outro Brasil. Se a gente conseguir avançar pelo menos 50%, nós não sofreríamos tanta violência. Então nós precisamos educar as pessoas. Os povos indígenas existem e são sujeitos de direitos, fazem parte da sociedade. Nós precisamos de respeito. Se a gente conseguir pelo menos 50%, eu teria cumprido a minha missão.

A gente não sabe o futuro, mas a gente está trabalhando hoje para que o futuro seja melhor para os nossos filhos, netos. Essa luta não é só dos povos indígenas, porque essa luta tem um impacto nacional e global. Nós queremos contribuir, trazendo nossos conhecimentos, nossa forma de ver o mundo, para reconectar as pessoas com a Terra. Nós não temos um plano B. É isso que nós temos que fazer: partilhar, ver harmonia, respeitar.

 

*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br



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