Dia internacional dos povos indígenas: “Ninguém fica para trás”

9 de agosto de 2021 | Opinião

ago 9, 2021 | Opinião

Por Martha Fellows, pesquisadora do IPAM

Povos indígenas no mundo e no Brasil

Os povos indígenas no mundo possuem o direito à autodeterminação, à consulta e à participação no processo de criação de políticas públicas que impactam diretamente seus modos de vida. São cerca de 500 mil pessoas que vivem em 90 países cujas línguas, culturas e tradições próprias são um retrato vivo do vínculo único que cada povo tem com seu território. Na América Latina há mais de 800 povos indígenas que habitam desde as altas montanhas andinas, à densa floresta amazônica, região de alta sociodiversidade com 370 povos diferentes, além dos povos autônomos que vivem em isolamento voluntário.

Apesar das garantias legais reconhecidas por órgãos internacionais e dos compromissos assumidos pelos países diante da Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas, a pandemia de COVID-19 expôs as desigualdades estruturais que marcam a história desses povos (Fellows et al., 2021). No Brasil, nos últimos dois anos, cerca de vinte ações legislativas foram propostas em âmbito federal e afetam diretamente os direitos indígenas constitucionais. Portanto, a mensagem das Nações Unidas “ninguém fica para trás” carrega a urgência que o assunto demanda neste dia 09 de agosto de 2021.

Riscos aos direitos indígenas

Duas propostas, recentemente pautadas no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF), ameaçam a garantia dos direitos indígenas. O projeto de lei 490 de 2007 propõe a alteração da legislação, no que diz respeito ao processo de demarcação de Terras Indígenas (TIs) e ao uso dessas áreas. Em sua redação este PL pretende modificar a lei n° 6.001, de dezembro de 1973 que dispõe sobre o Estatuto do Índio, e o Decreto n° 1.775 de janeiro de 1996, ao transferir para o poder legislativo a competência de demarcar terras indígenas.

Ao longo dos quatorze anos em que esse processo tramitou na Câmara, 13 novos projetos de lei foram incorporados ao texto original. As principais transformações propostas atingem diretamente o direito dos povos indígenas aos territórios que tradicionalmente ocupam, abrindo precedentes para a instalação de empreendimentos de “relevante interesse público”, ressuscitam a tese do marco temporal, que restringe o direito à terra aos povos que comprovarem estar em seus territórios no dia 05 de outubro de 1988, retiram o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, expõem os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário a contatos sem seu consentimento e complexificam o processo de demarcação ao incluir novas etapas de contestação.

Em paralelo, nas mesas do STF, corre a discussão sobre vincular a tese do marco temporal ao pedido do governo do estado de Santa Catarina contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. Esta tese tem suas raízes nas condições impostas pelo processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo entendimento jurídico era de que estariam restritas somente a esta TI.

(In)Competência técnica 

Os argumentos usados para defender a aprovação de tal projeto são rasos e sem fundamentos. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão competente por coordenar os processos de demarcação de Terras Indígenas, é composta por um corpo técnico que passou por critérios de seleção pública para garantir os princípios da legalidade, impessoalidade, eficiência e moralidade. Portanto, não há subjetividade envolvida no processo de demarcação de TIs, conforme o PL 490/07 sugere.

Além disso, os cerca de 1.560 servidores da FUNAI enfrentam cortes (INESC, 2020) e desafios que fazem com que mais do que 230 TIs ainda estejam aguardando completar a homologação, além daquelas que nem sequer tiveram seus processos iniciados. Mesmo que os 513 deputados federais encontrassem poderes hercúleos, e deixassem de lado todos os outros temas que devem ser tratados por eles, para cumprir com a Constituição Federal e demarcar tais áreas, esses políticos não possuem conhecimento técnico sobre o tema, o que significaria anular quaisquer novas demarcações.

Interesse privado

As Terras Indígenas já estão em processo de invasão por terceiros, que aumentou significativamente nos últimos dois anos. Das 330 TIs do bioma Amazônia, um total de 255 já tiveram parte de seu território capturado por entes privados por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que significa uma área de 3,5 milhões de hectares que deveriam cumprir com “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, segundo o artigo 231 da Constituição Federal.

A mineração também já está entranhada em diversas TIs, acirrando conflitos e gerando impactos diretos na região, o que significa um desmatamento 2,6 vezes e a incidência de fogo 2,2 vezes maior nos 5 km perto de garimpos ilegais do que nas áreas fora desse raio de influência.

Interesse público

Além de ferir os direitos fundamentais dos povos indígenas, abrir as TIs para outros usos gera impactos diretos no cotidiano de todos. Substituir a vegetação manejada pelos indígenas por áreas de monocultura e pastagem resulta no aumento significativo da temperatura em 32% e 24%, respectivamente (Silvério et al., 2015). Esse desequilíbrio, provocado para defender o “relevante interesse público”, gera escassez de água, elemento básico para garantir a agricultura, pecuária, geração de energia, e em última instância a vida. A literatura científica já apresentou dados concretos sobre como é possível aumentar a produção enquanto se reduz o desmatamento (Stabile et al., 2020). Portanto, colocar em prática a Constituição Federal no que diz respeito aos direitos originários dos povos indígenas e ampliar as Áreas Protegidas é importante para todos.



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Saiba mais em brasil.un.org/pt-br/sdgs.

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