Por Bibiana Alcântara Garrido*
O Cerrado perdeu água natural em 91% de suas bacias hidrográficas nas últimas quatro décadas. A conta considera a área de superfície de água mapeada, medida em hectares. No ano passado, a superfície de água natural das bacias que compreendem o bioma ficou 28,8% abaixo da média histórica (1985-2024), ocupando cerca de 1,85 milhão de hectares.
Mesmo diante deste cenário, o aumento da superfície de água antrópica – por influência humana, como em reservatórios – garantiu ao bioma um “falso positivo” para fechar 2024 com acréscimo de 11% na superfície de água total em relação à média.
Os dados do mapeamento anual e mensal da superfície de água entre 1985 a 2024 são da iniciativa MapBiomas Água, integrada pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e foram divulgados nesta sexta-feira, 21, em antecipação ao Dia Mundial da Água, celebrado em 22 de março.
Riscos conectados e insegurança para 68 milhões de pessoas
A baixa afeta a irrigação de áreas agrícolas do Cerrado, que concentra 60% da produção nacional e metade da agricultura irrigada do país; bem como o escoamento para outros biomas, como o Pantanal, que mais sofreu com secas ao longo da série histórica.
Considerando o abastecimento para consumo humano, ao menos 68 milhões de pessoas correm risco de insegurança hídrica ao longo da área das bacias, de acordo com análise do IPAM, por conta da perda de água natural no Cerrado.
Onde a perda foi maior
“As cinco bacias hidrográficas que mais perderam superfície de água natural estão na região do planalto do Alto do Rio Paraguai, na conexão entre o Cerrado e o Pantanal. Essa região abriga as nascentes dos principais rios que regulam os pulsos de inundação no Pantanal e a diminuição na superfície natural de água é crítica para o funcionamento dos dois biomas”, diz Dhemerson Conciani, pesquisador do IPAM e da rede MapBiomas.
A bacia do Rio Nabileque tem a maior perda percentual em relação à média histórica. Localizada no encontro com a planície pantaneira, perdeu 90% (-73,2 mil hectares) de superfície de água natural entre 1985 e 2024.
Na sequência estão: bacia do Rio Negro de Mato Grosso do Sul (redução de 88%, -70,4 mil hectares); bacia do Rio Paraguai (redução de 71%, -235 mil ha); bacia do Rio Miranda (redução de 70%, -11 mil ha); e bacia do Rio Madeira (redução de 65%, -50 mil ha), esta última na divisa com o bioma Amazônia.
Abaixo, essas bacias estão representadas no contorno da margem esquerda, em vermelho escuro.

Variação na superfície de água natural nas bacias hidrográficas do Cerrado entre 1985-2024 (Fonte: MapBiomas Água)
Além da transição Cerrado-Pantanal, as perdas também se concentraram na fronteira agrícola do Matopiba (que compreende municípios do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia); e na divisa entre São Paulo e Minas Gerais.
No Matopiba as bacias mais afetadas foram a do Grande São Francisco 1 (-60%, -1.431 ha) e Carinhanha (-58%, -900 ha), enquanto a bacia do rio Araguari (-45%, -1.861 ha) liderou a perda de superfície natural na porção sul do Cerrado.
Para onde vai a água
Se a água natural do Cerrado está sumindo, a armazenada artificialmente segue aumentando. Em 2024, 68,5% das bacias compreendidas pelo bioma ganharam superfície de água por influência antrópica.
“A construção de hidrelétricas e grandes reservatórios no bioma contribuiu para este aumento, como o reservatório da hidrelétrica Serra da Mesa, no curso do Rio Tocantins em Goiás. Apesar de terem seu nível controlado, esses reservatórios são abastecidos por corpos hídricos naturais que sofrem efeito direto das mudanças no uso da terra e do desmatamento, além das mudanças climáticas”, afirma Julia Shimbo, pesquisadora do IPAM e coordenadora científica da rede MapBiomas.
O ganho de 11% na superfície de água total do bioma em relação à média histórica foi guiado, principalmente, pelo aumento em reservatórios (+54%) e hidrelétricas (+93%).
Desmatamento afeta a segurança hídrica
Um dos fatores que influencia na queda na superfície de água natural é o desmatamento.
A derrubada de vegetação nativa, especialmente em áreas próximas a rios, córregos e nascentes, altera a proteção dos ecossistemas aquáticos e a capacidade de autorregulação de enchentes e secas dos biomas, que dependem dessa dinâmica para a manutenção do fluxo de irrigação e dos ciclos hidrológicos naturais. As consequências são impactos negativos imediatos e de médio a longo prazo, alertam os pesquisadores.
Segundo uma análise do IPAM com dados do SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado), cerca de 31% das bacias hidrográficas com perda de água natural no Cerrado tiveram aumento do desmatamento entre 2023 e 2024.
Dessa forma, o desmatamento também altera a quantidade e qualidade das águas para uso humano, afetando a segurança hídrica, a geração de energia, a agricultura e o abastecimento público.
“A retirada da vegetação provoca uma diminuição na recarga dos lençóis freáticos e na vazão dos rios, diminuindo assim, a disponibilidade de água. Além disso, o desmatamento aumenta a erosão terrestre e sedimentação dos canais, impactando diretamente a qualidade das águas. Esse cenário agrava a segurança hídrica, energética e alimentar, que dependem da disponibilidade e qualidade da água para suas atividades”, explica Fernanda Ribeiro, pesquisadora do IPAM e coordenadora do SAD Cerrado.
Ribeiro acrescenta: “O controle do desmatamento no Cerrado, a implementação efetiva do Código Florestal e a proteção de áreas sensíveis, como Áreas de Proteção Permanentes que abrigam nascentes, são medidas para sanar a perda de água natural no bioma”.
*Jornalista do IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br
Foto de capa: Cachoeira do Rio Perdizes, em Baliza (GO) (Acervo ISPN/André Dib)