Beto Marubo: “A Funai precisa ter seu papel de polícia regulamentado”

19 de junho de 2023 | Notícias

jun 19, 2023 | Notícias

Por Bibiana Alcântara Garrido*

Esta entrevista foi publicada originalmente na Um Grau e Meio, newsletter com análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade, produzida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

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Beto Marubo é integrante da coordenação da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Na edição do dia 12 de junho, falou sobre o antes e depois dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips por pescadores ilegais na Terra Indígena Vale do Javari, em junho de 2022.

A edição também trouxe dados sobre a grilagem no Vale do Javari. Leia a íntegra.

IPAM: Você escreveu que Bruno e Dom seguem sendo assassinados. O que mudou no Vale do Javari e no Brasil depois de junho de 2022?

Beto Marubo: Pouca coisa mudou no Vale do Javari, apesar daquela situação trágica e infeliz. A Univaja fez parte da equipe de transição do governo. A gente foi convidado, na época, para compor junto com a Apib (Articulação Nacional dos Povos Indígenas). Lá, a gente apresentou uma série de sugestões, que foram pensadas junto com técnicos do governo, Polícia Federal, Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], pessoal que trabalha no combate ao ilícito ambiental. A gente imaginava que quando o governo assumisse isso seria executado. Não aconteceu.

A gente entende, de uma certa forma, porque é muito recente. O governo está com cinco meses e já teve que enfrentar uma série de situações, mas o que nos deixa destoando dessa leniência, vamos dizer assim, é que poucas providências foram tomadas, em que pese a atuação da Polícia Federal, dos ministros e de autoridades que foram para Atalaia do Norte. A ministra dos Povos Indígenas, a presidência da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], do Ibama, o secretário nacional de Segurança Pública, o coordenador nacional da Política Rodoviária Federal, o superintendente do Amazonas da Polícia Federal, o chefe da Força Nacional.

Em seguida, a gente teve uma reunião na base do Ituí pra fazer um plano, o que nos animou muito. Mas não foi executado. Agora que publicaram a criação de um GT [grupo de trabalho]. Diga-se de passagem, foi um evento muito mais articulado pela Univaja do que pelo interesse do governo. A Univaja juntou essas autoridades, conscientizou, sensibilizou, mas enfim, não passaram das boas intenções.

O que nós queremos no Vale do Javari Javari é que as atitudes concretas sejam realizadas, de fato. Ontem teve a primeira reunião do GT instituído pelo Ministério dos Povos Indígenas. A meu ver, foi uma reunião muito boa, que já deveria ter acontecido a muito tempo, na qual foram pautadas prioridades, questões que devem ser planejadas o quanto antes, sobretudo relacionadas à fiscalização, proteção territorial, proteção aos índios isolados e de recente contato, assim como as demais etnias e povos que habitam aquela região, também a proteção das lideranças que vêm sendo ameaçadas, isso é de conhecimento público. Foi o início. Agora é uma outra fase que a gente espera sair dessa letargia. Vamos ver as cenas dos próximos capítulos, se isso vai sair do papel mesmo ou não. A realidade é essa.

E na sua vida, o que mudou?

O que eu acho que mais ruim de tudo isso é que a gente teve que sair do território, devido a essas questões de segurança. Não havia nenhuma garantia de segurança, numa região de fronteira muito violenta.

Houve uma reação forte das pessoas que eram contra a exposição dos problemas do Vale do Javari a nível nacional e internacional. Isso dá luz às mazelas antigas da região, que é a questão do narcotráfico, da invasão da terra indígena consorciada com crimes internacionais, com a participação de políticos regionais e locais. Tudo isso já existia antes desse trágico incidente na nossa região, mas agora que vem sendo exposto na mídia, nos meios de comunicação.

A atuação da imprensa, dos parceiros, está sendo fundamental, porque isso cobra, né? A gente também fomentou a realização de documentários. Está sendo divulgado um documentário da Globo, pela Sônia Bridi, um do Repórter Brasil também. Acho que a BBC está com ideia de fazer algo nesse nível. São formas de mobilização para que esse tema não caia no esquecimento. Nós sabemos que as informações são muito tênues. Hoje está na moda, estão querendo saber, amanhã esquecem. É uma estratégia nossa a de registrar para posteridade, para que seja divulgado sempre e que não seja esquecido.

A companheira do Dom falou algo parecido na homenagem no Rio de Janeiro: contar as histórias para que não fiquem impunes. Você acredita nessa justiça?

Em um país como nós estamos vivendo, esfacelado politicamente e dividido, é preciso ter muita cobrança. Tudo o que foi alcançado, tanto no que diz respeito às investigações, quanto às atuações e decisões políticas, ainda que medíocres até agora, foi graças a cobranças e nivelamento.

Nós, enquanto lideranças do Vale do Javari, enquanto movimento indígena do Javari, estamos sempre nos falando, também com as famílias. A gente acha que esse é o melhor formato. Um exemplo da importância dessa participação, diversos grupos e coletivos, direitos humanos, ambientais, é o caso do marco temporal. É uma decisão importante e, do meu ponto de vista, que não sou do meio jurídico, é simples.

O Supremo simplesmente tem que dizer se a questão do marco temporal é constitucional ou não. Todo mundo sabe que não é constitucional e mesmo assim está sendo pautado no Supremo uma barreira jurídica. Nós temos um agronegócio muito forte, com a retórica de que é importante para a economia do país. Nós temos uma bancada do agronegócio também muito forte no Congresso Nacional.

Há um apelo muito misturado com essa retórica da direita, de que ‘índio é um atraso’ para o país ou que ‘já chega de reservas indígenas’… se não tiver uma atuação da sociedade, dos meios de comunicação, seja de grandes meios ou mídias alternativas, a gente pode perder essa batalha por uma fake news, uma retórica mentirosa.

O julgamento do marco temporal foi mais uma vez adiado no STF [Supremo Tribunal Federal]. Como essa espera impacta os povos indígenas?

Para se ter uma ideia, são resultados nefastos para a vida dos povos indígenas. Enquanto o Supremo não definir esse julgamento, nós temos a Câmara criando anomalias oportunistas. Estão definindo não só o que se pretende através do marco temporal no STF, mas também abrindo as terras indígenas para tudo quanto é iniciativa em benefício de grileiros e garimpeiros, com essa retórica de que é do interesse nacional, que os indígenas não devem pautar isso.

Vai de encontro a todos os balizamentos legais, tanto nacionais quanto internacionais. É o caso da 169, que é reconhecida com lei no Brasil. Esse é o principal prejuízo. Se o Supremo não definir isso, cria-se um ambiente muito propício para oportunistas criarem outros procedimentos, minimizarem ou até descaracterizarem o que já existe.

Um exemplo é a lei 6001 que define hoje a política indigenista. A lei 6001 tem lá seus atrasos, as circunstâncias já não são as mesmas de 1970, mas tem algumas questões que ainda são importantes na proteção das terras indígenas e dos direitos dos povos indígenas. É claro que precisa ser atualizada conforme o novo contexto e realidades políticas, sociais, econômicas e ambientais do nosso país hoje, mas ela pode simplesmente ser extinta para dar início a uma legalização, na Câmara dos Deputados, para destruir o que nós construímos em décadas. Então, essa enrolação, vamos dizer assim, do Supremo, só dá margem para que essas anomalias sejam criadas em outros espaços como a Câmara e o Senado.

Muitos jovens ingressaram na Univaja do último ano para cá. Como lidar com um trabalho que tem a ameaça à vida como rotina?

É um fenômeno que também nos surpreendeu no movimento indígena. A EVU (Equipe de Vigilância da Univaja) foi criada para um enfrentamento lá atrás, do desgoverno Bolsonaro, quando nós tínhamos uma Funai totalmente sequestrada por correntes políticas alinhadas com o governo Bolsonaro, ou seja, contra direitos indígenas e ambientais. Foram criando portarias e mecanismos administrativos para tudo que é nefasto aos direitos dos povos indígenas e à sobrevivência deles.

Nós não iríamos ficar esperando de braços cruzados, olhando isso acontecer onde tem a maior quantidade de índios isolados. Já estávamos em uma situação bastante vulnerabilizada, com o aumento das invasões. Para eles seria um genocídio. A gente temia muito isso e nesse contexto foi criada a EVU.

A iniciativa dessa forma, que não fazíamos parte até então, do jeito que estamos fazendo hoje, era vista com bastante preocupação pelas aldeias, devido não ao trabalho em si, mas ao nível de violência naquela região. Quando a gente criou a EVU era bem recente o assassinato do indigenista Maxciel. Havia um clima de insegurança e de medo. Criamos uma equipe que era muito mais para nos ajudar, empoderar o grupo nos trabalhos que tinham que ser feitos naquele momento.

Imaginamos que, passando o governo Bolsonaro, não haveria mais interesse e a gente teria que trabalhar com uma equipe pequena, só que não. E tem vários fatores, né? A gente tem a leitura de que os jovens viram o assassinato do Bruno como algo tipo ‘alguém veio e morreu por nós e não devemos voltar atrás mais. Não temos o direito de deixar essa causa parada’, por circunstâncias que estão além das nossas fronteiras.

Surpreendeu a gente porque há um voluntariado de muitos jovens, inclusive de mulheres, e no Vale do Javari isso não é normal. As mulheres indígenas falando ‘nós queremos estar na trincheira com vocês’, não faz parte da nossa cultura, com exceção de alguns povos que já tem essa dinâmica, como os Marubo. Mas temos Matis, Kanamari, Kulina Pano, temos os Korubo de recente contato querendo entrar para a EVU. Entende? Então é algo que nos surpreende.

Mas como continuar esse trabalho sem vulnerabilizar a vida dos parentes? Isso foi posto na última reunião do GT no Vale do Javari. Mas é algo que eu acho bonito, apesar de, infelizmente, num contexto muito violento. Não por acaso, nós temos 11 lideranças na lista de proteção prioritária na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil, inclusive, foi questionado recentemente pela Comissão para que desse uma resposta à altura dessa questão.

A gente acha que é um momento bom, mas e aí, como não vulnerabilizar a vida de mais parentes nesse front? Que não é nosso, é do governo. Como otimizar isso de maneira que venha a somar à atuação do Estado? São dilemas que a gente tem que planejar e discutir internamente.

Durante um treinamento, um jovem contou sentir a presença do espírito de Bruno entre a equipe. Você já teve a mesma sensação?

O Bruno se tornou um patrono dessa equipe, no sentido de ser uma referência importante para cada um de nós. Inevitavelmente, todos os integrantes dessa equipe vão ter como referência o trabalho, os pensamentos, as ideias e os sonhos iniciados pelo Bruno. Isso vai ser muito forte em todas as pessoas que entrarem nessa equipe da Univaja que chamamos de EVU. E nós temos total certeza da presença do Bruno, levando em consideração também as concepções culturais e religiosas de cada etnia. Kanamari tem uma concepção, Matis, Marubo. Nós somos unânimes em afirmar isso.

Depois de décadas atuando na proteção indígena diretamente no território, você passou a fazer isso em Brasília. Qual era seu sonho de criança? E hoje?

Meu sonho de criança era ser como meu vô, como meu pai. Como nossos ancestrais que coordenaram o nosso clã, que a gente chama de ninwavô, no decorrer dos séculos. Minha família coordenou esse clã. Todos nós temos nossos heróis, né? Meu meu herói era meu vô, meu pai, meus tios. Eu queria ter isso como prioridade.

Depois que eu passei a atuar no movimento indígena, trabalhei muito tempo na Funai, como chefe de frente de proteção, chefe de fiscalização em Atalaia do Norte, em outras regiões. Tive a oportunidade de trabalhar em Mato Grosso, Rondônia, Acre. A gente passa a ter outras concepções. Como você vai dar sua vida, o seu tempo de vida, e que isso seja bom, que valha a pena? Como qualquer pessoa.

O que mudou é isso: se antes eu queria ter uma aldeia, uma maloca, e coordenar meu clã, como foram meus ancestrais, agora eu acho que a proteção do Vale do Javari é vital. Não somente pros isolados, que já tem indícios reais de que sem a proteção do território não há vida lá para eles, então eles precisam do meio ambiente sadio para que possam viver da caça, da pesca, sem levar um tiro de um invasor pescador, de um garimpeiro. É algo que eu dei muito tempo da minha vida lá. Meu amigo deu a vida por essa causa. Os isolados e de recente contato.

E o futuro, as condicionantes climáticas, a importância desses espaços, perpassa a vida nossa no território. Agora, há uma importância pro país. Só que é um país que nega isso. É um país que aprova iniciativas como o PL 490, no Senado PL 2903, o marco temporal. Um governo que tentou de todas as formas desconstruir e mentir sobre a vida de um cara que estava lutando pelos povos indígenas, no caso de Dom e Bruno. ‘era aventureiro, irresponsável, não tinha autorização, não tinha experiência’, era algo que o Presidente da República falava.

A sociedade ainda não sabe a importância dos povos indígenas para o país, principalmente, num tema que é mais caro para todos os brasileiros, que valorizam tanto, que é a economia. O Brasil tem todas as condições agora. A nossa luta, do movimento indígena do Vale do Javari, que é de todos nós, não é somente viver no nosso espaço, mas que o país reconheça essa importância. Que todos saibam.

Se a gente não lutar por esse território, amanhã ele vai estar como muitas outras regiões. Yanomami nós estamos vendo o que acontece, e não significa que os Yanomami não estejam lutando pelo território, mas o desastre que está acontecendo porque os parentes não conseguem nem comer mais peixe, os rios estão mortos. Os Munduruku, os Kayapó, os, parentes do Xingu estão acuados, ao redor o agronegócio está acabando com os rios, parente não consegue nem tomar água porque tem veneno. Se a gente não lutar agora, nosso futuro vai ser uma grande incerteza.

O que é importante agora?

Eu acho fundamental ressaltar o fortalecimento da Funai. A gente deve sempre atentar e divulgar isso. A Funai é um órgão vital para os povos indígenas, a depender das circunstâncias de cada região, mas sobretudo os isolados e de recente contato.

É preciso fazer uma reformulação no seu escopo e cronograma. A Funai precisa ter seu papel de polícia regulamentado. Não faz o menor sentido uma instituição, que tem como uma das responsabilidade fazer a proteção e fiscalização do território, ter que lidar com pessoas armadas, que portam armas e que atiram, que matam servidores em serviço.

Então, é necessário que a Funai tenha seu poder de polícia regulamentado para enfrentar e garantir a proteção de mais de 13% do território nacional, parte desses territórios na região amazônica. Nós estamos vendo uma corrida avassaladora para roubar e saquear esses territórios, onde muitas vezes há índios isolados que têm como único anteparo a Funai.

‘Ah, tem a Polícia Federal’, não é a mesma coisa. ‘Ah, tem o exército’, não é a mesma coisa. Não tem. A instituição que tem essa expertise, que pode fazer esse trabalho muito bem, é a Funai. Hoje nós temos esse momento oba-oba, ‘vamos fazer um GT, vamos montar uma operação’.

No final, quem fica lá sozinho com os índios é a Funai. É um indigenista como Bruno Pereira e tantos outros, num acampamento, no meio do mato, com os índios. E como nós vimos, o Bruno é exemplo, eles morrem por isso.

 

*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br

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