“As mulheres indígenas são as principais responsáveis pela roça”

4 de março de 2024 | Notícias, Um Grau e Meio

mar 4, 2024 | Notícias, Um Grau e Meio

Maria Garcia*

Enquanto as mulheres têm menos presença na lavoura em comunidades não indígenas, as mulheres indígenas são as principais atuantes no cultivo agrícola dos territórios ancestrais.

Em entrevista para a newsletter quinzenal Um Grau e Meio, Maria Aparecida Apinajé explica esse papel das mulheres no roçado a partir da visão do seu povo. Ela é educadora e atua como professora na terra indígena Apinajé, a qual ela pertence, localizada em Tocantins.

 

Como técnicas de agrofloresta fazem parte da tradição indígena?

O sistema agroflorestal é bem-sucedido no território indígena pois a preocupação em manter a natureza no seu perfeito estado não envolve só a agricultura em si, mas também a espiritualidade pelo cuidado da mãe-terra. Os saberes ancestrais se preocupam com o território. Para o meu povo Apinajé, o território é sagrado e os conhecimentos tradicionais são usados em prol disso.

Eles são passados por gerações e se fortalecem pela riqueza dos alimentos. Tudo está interligado. A importância do alimento está presente nas manifestações culturais para evitar o consumo de produtos comercializados. Nossa pintura corporal faz menção a plantas e animais, por exemplo. Esses conhecimentos tradicionais se fortalecem e vêm resistindo. Claro que algumas interferências aconteceram ao longo dos anos, mas ainda preservamos o cultivo tradicional.

 

E qual seria o papel da mulher nesse processo agrícola?

Usamos a rotatividade das roças e a mulher exerce um papel muito importante nelas. A mulher indígena é responsável pela roça e pela sua colheita. E parte disso se dá pelos costumes, pela tradição e pela relação íntima com o território. O alimento da agrofloresta está presente dentro dos costumes dos Apinajé, nos quais as roças têm um papel social.

São locais em que há transmissão de saberes. A família se reúne para decidir onde fazer a roça, com preocupação em não desmatar e pensando no fortalecimento do território. Todos os conhecimentos são passados às crianças nesse momento, porque elas se envolvem muito na roça.

 

Por que a mulher acaba exercendo essa função de responsável pela roça?

Pelo cuidado familiar, a mulher é responsável pelas roças. Os homens trabalham, mas durante a derrubada. A partir da plantação, toda a responsabilidade é da mulher: plantio, colheita e preparo, cozimento e produção dos alimentos. Ela também é responsável por transmitir o conhecimento para a família.

Por exemplo, os nossos costumes são muito usados na plantação de arroz e de mandioca. Da mandioca a gente faz o paparuto [prato à base de mandioca assado na fogueira] e o bolo Xw’ykupu, feito de mandioca e cozinhado enterrado. São as mulheres que ensinam o modo de preparo.

 

Por isso que as mulheres indígenas se tornaram as “guardiãs das sementes”?

Sim. O cuidado familiar envolve trazer a permanência da cultura. No meu povo, as mulheres usam os conhecimentos tradicionais e, dentro desse contexto, elas guardam as sementes. A mulher tem o dom da vida por gerar vida. E seria nessa geração de vidas que ela guarda a semente. Por meio dela, vidas vão ser frutificadas e geradas, não faltando alimento com a preservação dos conhecimentos tradicionais. É por isso que guardamos as sementes para as próximas gerações.

 

Como as mudanças climáticas impactam esses processos e afetam o trabalho das mulheres?

Como estamos preocupadas em preservar o alimento e o território, a gente tem feito ações de cuidado com a terra. Mas, infelizmente, as mudanças climáticas trouxeram impactos sociais e culturais. Quando pensamos em uma cerimônia, um alimento específico é necessário. E com as mudanças do clima, isso fica confuso. Em períodos de chuva tem seca, ou o contrário.

As frutas nativas podem não dar em uma época porque, ou o fogo queima, ou não teve chuva o suficiente para regenerar. E quando a dinâmica da roça muda, também afeta a cultura porque o encontro de famílias fica perdido. Aqui tem muito pequi, bacuri, caju e buriti, este usado como remédio para gripe e para o artesanato. Para fazer a colheita, a família se reúne e conta histórias. São momentos de lazer e cantoria com menção à água, ao sol e ao contato com a natureza, e as mulheres são responsáveis pela condução.

Anciãos, jovens e crianças se encontram. Então, há uma troca de conhecimento tradicional. Quando não há uma vivência, como a criança e o jovem vão conhecer aquele ritual, aquela música? Como vão conhecer aquela planta medicinal e para que ela serve? Se a gente não tem o animal ou a fruta, como vai cantar e propagar esse conhecimento?

Grande parte da educação é pela oralidade, sem documentos. Nossos anciãos estão partindo e levando consigo os ensinamentos da cultura do povo Apinajé. Diante disso, nós educadores temos o desafio de registrar nossos costumes, nossas manifestações culturais e nossos cantos. Esses encontros também são importantes para a preservação da língua. Infelizmente, muitos povos perderam o idioma, mas continuamos com ela. Tudo está interligado ao território. O artesanato também, que, em grande parte das vezes, são as mulheres indígenas que produzem e as técnicas são passadas para as suas filhas.

 

As mudanças climáticas também podem levar ao aumento de incêndios e você faz parte de uma brigada voluntária exclusivamente feminina no território Apinajé. Como surgiu essa equipe?

Perdemos nossos animais e as frutas nativas pelos incêndios. Teve um período muito crítico, em que faltaram o bacuri e o pequi. No período de florescer, o fogo veio e queimou tudo. Isso causa impacto na alimentação e a gente não pensa só no hoje, mas também no amanhã. Como vivemos em coletivo, a gente sofre em coletivo. Muitas mulheres, preocupadas com o que iam dar aos filhos e na perspectiva de cuidar do território sagrado, uniram-se.

Nos reunimos para somar forças pelo bem coletivo. Formamos a segunda brigada voluntária exclusivamente feminina de Tocantins e a primeira Apinajé contra os incêndios florestais, envolvendo todo o processo do manejo integrado do fogo. Além disso, fizemos um processo de conscientização na escola e na comunidade para o uso correto do fogo, fortalecendo o conhecimento tradicional que ficou um pouco perdido em relação a esse costume.

A gente tem uma relação cultural com o fogo. Então, resgatamos o que ficou esquecido. Também trabalhamos com o serviço agroflorestal para restaurar as áreas já impactadas com os incêndios, revitalizando nascentes. A nossa brigada também visa fortalecer o protagonismo feminino. Culturalmente, a mulher não tinha espaço de liderança. Essa liberdade que temos agora veio de muitas mulheres que lutaram antes para ocupar esse lugar.

 

* Jornalista do IPAM

Foto de Capa: Laila Menezes/Cimi GO/Reprodução



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