Em um momento em que todos são desafiados a repensar sua existência para reconstruir um mundo melhor após a pandemia, o conhecimento tradicional dos povos indígenas tem muito a contribuir – e isso vai além da conservação das florestas.
“A gente tem uma tendência a pensar nos indígenas como ‘guarda-parques’, porque onde eles estão o desmatamento é infinitamente inferior de onde eles não estão. Mas essa acaba sendo uma visão utilitária dos índios. A sabedoria indígena contém em si o segredo para o resgate da cognição humana, do entendimento do que é a vida”, disse Antonio Donato Nobre, pesquisador sênior no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), durante encontro do Amazoniar na última quinta-feira (01/07).
Mediado pela pesquisadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) Martha Fellows, o episódio também contou com a participação de Genisvan Melquior André, responsável pelo Laboratório de Sistema de Informação Geográfica (SIG) do Conselho Indígena de Roraima (CIR), e teve como tema central a importância do conhecimento ancestral dos indígenas.
Origem da ciência e ruptura com a religião
Durante o bate-papo, Nobre relembrou as origens da ciência: com a violência da Inquisição, houve uma ruptura entre ela e a religião. Segundo ele, isso levou a ciência a desenvolver o método de acreditar apenas em fatos comprovados, que nos fez perder a conexão com os saberes de povos nativos, não só da América Latina, como de outras regiões também, como os celtas na Europa e os sumérios no Oriente Médio.
“É necessário que a gente relembre essa origem de trauma da ciência, que produziu dois efeitos. O primeiro é que, como só se deve acreditar naquilo que é provado, tudo aquilo que não é – isto é, a vida e toda a complexidade nela inerente – fica em ‘terra de ninguém’. Ou, quando é demonstrado, já é tarde demais, que é o que está acontecendo com o planeta”, disse.
Além disso, após a Inquisição, todas as culturas não cristãs passaram a ser classificadas como pagãs. “De um lado, os pagãos foram jogados na ‘terra de ninguém’; de outro lado, a ciência que surgia com força buscando a verdade desconsiderava tudo que estava dentro da sabedoria indígena por não ter sido demonstrado”, contou o pesquisador.
De volta ao futuro
De acordo com Nobre, hoje, depois de muitas descobertas e pesquisas, “a ciência confirma, palavra a palavra, a sabedoria dos povos nativos”, grande parte dela preservada pelos descendentes na narrativa oral e na conexão com a natureza, um fator singular nas culturas indígenas.
E é justamente a ligação com a natureza um dos pontos mais importantes que os conhecimentos tradicionais têm a nos ensinar. “Quando você tem uma conexão muito forte com a terra, como os nativos têm, a percepção de maravilha é o que produz o encantamento, sem a noção de posse. É uma constatação de que a vida não pulsa só em cada pessoa, mas também nas árvores, nos rios, nos ventos, no céu noturno, na lua, nas estrelas, no sol. Algo que você reconhece como sagrado e no seu coração, não apenas na sua cabeça, você protege e cuida”, afirmou. “Captar essa sabedoria se tornou não só importante para a valorização dos povos indígenas, mas essencial para a sobrevivência da humanidade na Terra”, concluiu Nobre.
Genisvan, que é especialista em geoprocessamento, comentou durante sua participação no Amazoniar que o uso de tecnologias modernas é aliado aos conhecimentos tradicionais nas pesquisas do SIG. “Um exemplo é o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), feito com base nos conhecimentos tradicionais. A tecnologia que usamos é mais para validar”, explicou.
Ele conta que ferramentas para monitoramento, como drones, também têm sido bastante úteis para a contenção do fogo em época de seca. “São ferramentas novas, tecnologias que estão contribuindo bastante”, disse. “Estamos trabalhando para gerar conhecimento não só para nós, mas também para o governo e populações não-indígenas.”
Sobre o Amazoniar
O Amazoniar é uma iniciativa do IPAM para promover um diálogo global sobre a floresta amazônica e sua influência nas relações entre o Brasil e o mundo.
O segundo ciclo de debates teve como foco os povos indígenas e o seu papel como principais aliados no combate ao desmatamento e na conservação da floresta, sua contribuição para a ciência e para a cultura, bem como seu impacto no desenvolvimento sustentável da região.
Próximo encontro
O próximo e último encontro deste ciclo será no dia 15 de julho. Adriana Ramos (Instituto Socioambiental – ISA), Gregório Mirabal (Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica – COICA) e Paulo Moutinho (IPAM) guiam a discussão sobre a integração dos povos indígenas da Pan-Amazônia, seus desafios comuns e suas estratégias para combater as desigualdades.
Episódio 10: Integração Pan-amazônica: inúmeras culturas em um só bioma
Data: Quinta-feira, 15 de julho de 2021
Horário: 13h (EST) / 14h (Brasil) / 19h (CEST)
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