“A educação deve valorizar, não apagar, as identidades indígenas”

15 de abril de 2024 | Um Grau e Meio

abr 15, 2024 | Um Grau e Meio

Por Elias Serejo*

Para Uwira Xakriabá, doutor em Antropologia, fundador da Faculdade de Etnodesenvolvimento, localizada no município de Altamira (PA), e único professor do quadro permanente da UFPA (Universidade Federal do Pará), a intersecção entre o conhecimento ancestral – ou as epistemologias indígenas – e a produção científica acadêmica contemporânea pode ser a resposta de questões urgentes para a humanidade, como o clima e a sustentabilidade ambiental. 

Em entrevista para a newsletter quinzenal Um Grau e Meio, Uwira, também conhecido como William César Lopes Domingues, revela sua visão sobre a incorporação dos saberes indígenas nas políticas educacionais e públicas. Também reflete sobre os obstáculos enfrentados por estudantes indígenas, a pertinência das epistemologias nativas no ambiente acadêmico e seu impacto na conservação ambiental.

Descubra como Uwira Xakriabá, através de sua perspectiva e atuação, propõe um diálogo entre culturas, destacando a contribuição dos conhecimentos tradicionais para a ciência contemporânea e a sustentabilidade do planeta. Além da contribuição acadêmica, ele ecoa a voz e a ancestralidade dos povos indígenas no cenário educacional e científico brasileiro na Amazônia.

Como foi sua trajetória até se tornar professor universitário e qual o impacto de ser um indígena nessa jornada?

Minha história não começa em uma aldeia, mas entre o norte de Minas Gerais e o sul da Bahia, em uma região de semiárido. Embora meu povo fosse considerado integrado à sociedade não indígena, a verdade é que nunca deixamos de sentir o peso do preconceito. Isso vinha de duas formas: pelo fato de ser indígena e, paradoxalmente, por não me encaixar no que alguns esperavam que um indígena “deveria ser”. 

A virada se deu após um encontro transformador com os Asurini do Xingu, que me fez repensar meu caminho e trouxe uma decisão coletiva, junto aos anciãos do meu povo, de “amansar a universidade”. Eles me encarregaram de tornar esse espaço, até então distante e inacessível, um lugar também nosso.

Assim, entrei na UFPA por  um concurso público, e lá pude contribuir para a criação do curso de Etnodesenvolvimento. Foi uma missão para incorporar e valorizar nossa voz indígena no diálogo acadêmico, criando pontes entre diferentes maneiras de entender o mundo. E, nesse processo, descobri que ser indígena não é apenas parte do que sou, mas também como vejo, penso e atuo no mundo, influenciando profundamente meu caminho.

Quais são os principais desafios para os estudantes indígenas no sistema de educação formal brasileiro?

Os desafios incluem a necessidade de reconhecer e integrar as línguas e culturas indígenas nas propostas pedagógicas, evitando o epistemicídio. A educação deve valorizar, não apagar, as identidades indígenas. 

A educação escolar indígena não deve significar a escolarização dos processos educativos culturais dos nossos povos, porque são esses processos que nos formam como os sujeitos indígenas que somos. 

No ensino superior, embora tenhamos avançado em relação ao acesso com cotas e reservas de vagas, na maioria das universidades é preciso problematizar que isso por si só não garante sucesso, uma vez que nada mudou nas grades dos cursos e nem nas estruturas universitárias de modo a acolher os nossos jovens. 

Os avanços que tivemos no acesso estão longe de ser seguidos pela permanência. Muitos de nós até conseguem acessar a universidade, mas poucos conseguem ficar. Faltam bolsas e apoio para a vida fora dos territórios.

Em sua tese, você explora as epistemologias indígenas. Explique esse conceito e sua relação com a ciência produzida na universidade.

As epistemologias indígenas são nossas maneiras de compreender o mundo e a ciência, baseadas em nossas culturas e interações com a terra. Oferecem perspectivas valiosas que podem enriquecer a ciência global, especialmente em tempos de crises ambientais. 

Esses saberes promovem uma vida em harmonia com a natureza, fornecendo modelos sustentáveis que são cruciais para o futuro da humanidade.

A manutenção de nossas vidas no continente desde tempos imemoriais, antes da chegada da epistemologia da colonização, vinda nas galés europeias, é o atestado de eficácia de nossos modos de fazer ciência com base nos territórios que habitamos e na comunhão humanizada que mantemos com eles.

Neste momento crítico da humanidade, nosso modo de vida e nossa organização social, centrados na coletividade, fornecem modelos de vida não predatórios da natureza, da qual nos entendemos como parte, e que certamente podem orientar o mundo na busca do bem-viver e na promoção do bem comum.

Sendo o único professor indígena na UFPA, quais experiências você poderia compartilhar sobre representatividade e inclusão no ambiente acadêmico?

Há mais de uma década sou o único professor indígena efetivo na UFPA. Quando iniciei meus estudos, as políticas afirmativas eram uma realidade distante e poucos indígenas tinham acesso à educação superior. É essencial que se pense em concursos específicos para indígenas, quilombolas, extrativistas e outros grupos, para que possamos enriquecer o meio acadêmico com nossos conhecimentos.

Em um momento de crise humanitária e desequilíbrios causados pelo consumismo exacerbado, a academia precisa abraçar essa diversidade para se posicionar como um espaço de conhecimento e inovação. Somos 270 povos diferentes, com línguas e culturas únicas, o que torna a representatividade um desafio, mas não menos importante.

A inclusão acadêmica demanda um esforço contínuo de mediação entre saberes diversos, muitas vezes ancorados em perspectivas metafísicas distintas. Esse papel mediador se estende aos diálogos com a comunidade e com a própria instituição, lembrando sempre que, como indígena, trago comigo a visão e o conhecimento do meu povo e daqueles com quem tive a honra de aprender e compartilhar experiências.

Como o conhecimento indígena contribuiu com a conservação da Amazônia ao longo da história e, na sua opinião, qual a relação entre saúde e conservação ambiental?

A Amazônia que conhecemos hoje é, em grande parte, um legado dos nossos antepassados, que moldaram essa terra muito antes da chegada dos colonizadores, que ainda influenciam nosso país. Para nós, indígenas, a Amazônia não é apenas uma floresta; é o lar de centenas de povos que, durante séculos, cuidaram e interagiram com esse ambiente de maneira sustentável, até serem interrompidos pela colonização.

Esse cuidado e interação com a terra são fundamentais para entender a conexão profunda entre saúde e conservação ambiental em nossa visão. Para nós, saúde não se restringe ao bem-estar físico ou mental individual; ela é inseparável da saúde do território onde vivemos. Vemos a terra como um ser vivo, uma mãe que nos provê vida e sustento. Nossa relação com ela é não apenas social, mas também política, pois reconhecemos e respeitamos seus direitos.

Assim, a conservação da Amazônia e de outros biomas que habitamos é essencial para nossa saúde. Não podemos conceber um estado de bem-estar enquanto nossos territórios sofrem. Esta visão holística enfatiza a importância de ouvir e incorporar o conhecimento indígena nas estratégias de conservação, reconhecendo que a saúde das pessoas e do planeta são intrinsecamente ligadas.

De que forma os saberes tradicionais indígenas podem contribuir para a ciência e pesquisa contemporâneas?

Os saberes tradicionais indígenas, ou nossas epistemologias, têm muito a oferecer à ciência e à pesquisa contemporâneas. À medida que a ciência ocidental começa a reconhecer e valorizar esses conhecimentos, podemos esperar uma transformação significativa nos paradigmas científicos atuais. Essa mudança pode nos guiar em direção a uma ciência que promove uma vida em harmonia com a natureza, contribuindo para uma sustentabilidade genuína, longe de ser um mero pretexto para a exploração ambiental.

Nossas contribuições podem se manifestar de diversas formas, como no desenvolvimento de novos medicamentos e abordagens de saúde, ou no uso sustentável de recursos naturais. Além disso, nossas formas de organização social, que promovem a coletividade e o bem-estar comum, podem oferecer insights valiosos para a reestruturação da sociedade ocidental. Em nossas comunidades, a ausência de pessoas sem teto, crianças abandonadas, segregação de doentes mentais, ou a inexistência de prisões, destaca uma forma de viver em sociedade que merece atenção e estudo.

Não dependemos de estruturas estatais ou de impostos e temos mantido nossas sociedades dessa maneira por séculos, muito antes da chegada dos colonizadores. Esses aspectos de nossa existência não são apenas curiosidades; são conhecimentos e práticas testadas pelo tempo que podem enriquecer e orientar a ciência e a pesquisa atuais. Como dizem nossos anciãos, ‘o futuro é ancestral’. É hora de a ciência ocidental explorar e integrar essas riquezas em sua busca por conhecimento e inovação.

Sua tese aborda a saúde indígena no Brasil. Qual a relação entre saúde e cultura dos povos indígenas, e como as políticas públicas podem evoluir para atender melhor essas comunidades?

Essa relação é profundamente intrincada e distinta da concepção ocidental. Para nós, a saúde não se limita ao bem-estar físico; ela engloba a relação harmônica com nossos territórios e inclui aspectos metafísicos que a perspectiva ocidental muitas vezes não abrange. Assim, nossa definição de saúde é inseparável de nossa cultura e da forma como interagimos com o meio ambiente.

Dessa maneira, as políticas públicas de saúde precisam evoluir para reconhecer e respeitar essas diferenças culturais. O Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, com mais de duas décadas de existência, necessita de uma atualização que reflita as realidades contemporâneas e a legislação recente, além de uma abordagem que transcenda a mera audição para realmente nos escutar e considerar nossas vozes e conhecimentos.

Para que a saúde indígena seja efetivamente atendida, é essencial garantir nossos direitos aos territórios que habitamos e com os quais mantemos uma relação vital. Os sistemas de informação em saúde devem adaptar-se para reconhecer e mensurar não apenas os problemas de saúde, mas também os tratamentos e práticas de cuidado tradicionais que nossos especialistas utilizam e que a medicina ocidental muitas vezes ignora.

O modelo de atendimento à saúde indígena deve priorizar a promoção da saúde, não se concentrando unicamente no tratamento de doenças. Esse enfoque preventivo é fundamental para um sistema de saúde que sirva às comunidades indígenas, respeitando suas concepções únicas de saúde e bem-estar.

Como a Faculdade de Etnodiversidade da UFPA está contribuindo para o diálogo entre diferentes saberes e culturas?

A Faculdade de Etnodiversidade da UFPA, da qual tenho a honra de ser um dos fundadores, desempenha um papel fundamental no fomento do diálogo entre diversos saberes e culturas. Nela, oferecemos cursos de Etnodesenvolvimento e Educação do Campo, ambos estruturados em torno do princípio da alternância pedagógica. Esta abordagem é particularmente voltada para povos indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores artesanais e outros grupos tradicionais, unidos pelo profundo vínculo com a terra.

Nossa faculdade é um espaço de encontro e aprendizado, onde esses coletivos têm a oportunidade de construir conhecimento coletivamente, baseando-se nas suas experiências e relações com seus territórios. Aqui, a educação é um processo bidirecional: todos ensinam e todos aprendem, criando um ambiente onde o conhecimento ocidental é introduzido não como imposição, mas como um diálogo com saberes tradicionais.

Um aspecto notável é como o conceito de etnodesenvolvimento é continuamente revisitado e redefinido pelos próprios estudantes. Por exemplo, a turma de 2023 propôs a transição do termo ‘etnodesenvolvimento’ para ‘etnoenvolvimento’, refletindo o desejo de estreitar ainda mais seus laços com seus territórios, em vez de se afastarem deles.

Os egressos da Faculdade de Etnodesenvolvimento têm desempenhado papeis importantes em suas comunidades, atuando como diretores, secretários, coordenadores e professores em escolas locais, liderando sindicatos e organizações sociais, e até mesmo engajando-se na política como vereadores. Isso demonstra o impacto profundo e positivo que nossa faculdade tem alcançado, promovendo não apenas a educação, mas também o empoderamento e a representatividade de diversos grupos culturais.

Por fim, que mensagem você gostaria de deixar para os jovens indígenas que aspiram seguir uma carreira acadêmica ou lutar pelos direitos de seus povos?

Aos jovens indígenas que estão considerando a academia ou o ativismo em defesa dos direitos de seus povos, eu diria: valorizem a sabedoria dos mais velhos e assumam o compromisso, junto a eles, de perseguir uma carreira acadêmica ou uma causa que não beneficie apenas vocês individualmente, mas que contribua de forma significativa para suas comunidades.

Estamos no meio de um processo de ‘amansar’ a universidade, de torná-la um espaço mais inclusivo e receptivo às nossas vozes e saberes. É fundamental que continuemos esse trabalho, não só pelo bem de nossos povos, mas também pelo futuro de nosso planeta, nossa casa comum. Este é um momento de grandes oportunidades: de aprender, ensinar, compartilhar e transformar.

Lembrem-se de que cada passo que vocês dão na academia ou em qualquer forma de luta pelos direitos indígenas é um passo para toda a comunidade. Vocês estão abrindo caminhos, não apenas para si mesmos, mas para as gerações futuras. Assumam essa responsabilidade com orgulho e determinação, sabendo que estão contribuindo para um futuro mais justo, mais inclusivo e mais sustentável

*jornalista do IPAM.



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

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