Por Lucas Guaraldo*
Entrevista com Paulo Moutinho, pesquisador-sênior do IPAM e idealizador do TransCerrado. Através do projeto de cicloturismo, Paulo busca conectar centros urbanos, comunidades rurais e comunidades tradicionais através da troca de informações. Ciclista ávido, o ecólogo já participou de quatro expedições do TransCerrado, sendo as duas últimas focadas na Chapada dos Veadeiros e seus arredores.
O que o é TransCerrado?
O TransCerrado é uma expedição de bicicleta e, ao mesmo tempo, uma expedição científica. O que nós queremos com ele é dar atenção a beleza do Cerrado e sua importância para o Brasil através da ciência em duas rodas. Queremos mostrar a importância do bioma para a água, para a biodiversidade e para o bem-estar da sociedade brasileira em geral.
E qual o papel de um projeto como esse na conservação? Qual o diferencial ambiental de uma cicloaventura?
O grande diferencial do TransCerrado é unir dois mundos que hoje estão desconectados: o mundo urbano e o mundo rural. Essa conexão é feita através do esporte de aventura ao ar livre e usando isso, conseguimos injetar ciência nesse meio.
No mundo urbano, o ciclismo vem crescendo rapidamente, especialmente depois da pandemia, como esporte e como forma de mobilidade urbana. O que a gente faz no projeto leva muita gente que mora nas cidades para conhecer o campo e assim criamos novas oportunidades de discussão sobre a questão da proteção ambiental, consequências do desmatamento do Cerrado para o clima e o bem-estar.
Trocando em miúdos, o TransCerrado gera uma oportunidade completamente diferente, através da bicicleta, de unir ciência e esportes de aventura para se discutir a preservação do bioma, para discutirmos alternativas de conservação, mas também para estimular o desenvolvimento sustentável das regiões que ainda estão cobertas pelo bioma.
Qual seria o maior benefício de concretizar essa ponte entre o mundo urbano e o mundo rural?
Eu acho que seria uma conexão que faria as pessoas entenderem que o que acontece ao lado da cidade, fora da cidade, afeta tremendamente quem está na cidade. Um exemplo muito claro no Cerrado é a fumaça dos incêndios florestais que leva milhares para o hospital com problemas respiratórios. As pessoas só lembram que existe um problema climático no Cerrado quando sente cheiro da fumaça ou quando falta água.
O que você faz com o TransCerrado é que quando você cria essa conexão através da bicicleta, você entende que há uma dinâmica no mundo rural que afeta diretamente o mundo urbano. E nas cidades, onde geralmente estão os tomadores de decisão, as pessoas geralmente não conhecem o que está acontecendo na zona rural.
A bicicleta, por si só, é algo que faz essa conexão. A gente começa a discutir o equipamento, onde dormimos, onde cozinhamos porque esse é o gancho entre os dois mundos. Quem está no campo conhece a bicicleta e quem está na cidade também. Nos dois a gente consegue atrair com a bicicleta e terminar falando de conservação e recuperação ambiental. O início é sempre estarmos sentados em um selim, pedalando, mas a gente sempre acaba no desenvolvimento sustentável e na importância do Cerrado para o Brasil.
E do lado do cientista? É diferente visitar esses lugares de bicicleta e não com uma estrutura maior?
É muito diferente! O projeto coloca os cientistas em uma situação em que necessariamente vamos ter que interagir com a população que reside nesse bioma. Isso só conseguimos com a bicicleta. Se estivéssemos de carro, por exemplo, iríamos de um ponto a outro, direto e sem parar no meio do caminho para conhecer melhor a região. De avião, muito menos. A bicicleta exige que você interaja.
É diferente de ir andando, embora também seja possível, porque conseguimos percorrer uma distância muito maior pedalando. Com a bicicleta, conseguimos percorrer grandes distâncias, interagir com muitas pessoas e entender de fato a dinâmica da região que estamos visitando.
Fazer isso sem um carro de apoio também serve quase como um ato de respeito aos moradores do Cerrado, quem vive na zona rural do bioma. Ao fazer esse esforço pela conservação do ambiente, um esforço que além de físico é mental, você ganha o respeito dessas pessoas. É muito nítido.
As pessoas abrem as portas de suas casas para nos receber e para conversar sobre a vida que elas têm, sobre as angústias, sobre o que esperam do futuro, sobre conservação e sobre água. Você só consegue isso porque você fez esse esforço pela conservação da região, o esforço para conhecer essas pessoas fora do ar condicionado, pegando poeira no rosto e assim por diante.
As duas últimas edições do TransCerrado visitaram a região da Chapada dos Veadeiros. Quais foram as diferenças entre a expedição de 2022, que deu a volta no parque nacional, e a de 2023, que visitou o território Kalunga?
Desde o início do projeto a gente tem passado por todo tipo de região em diferentes períodos do ano. Algumas vezes passamos por um período mais seco, outras por dias mais chuvosos, e conseguimos ver uma série de problemas na região e isso é relatado pela população da região.
Comparando o ano passado com esse, acho que o mais impressionante foi ver como o modo de vida das comunidades tradicionais do Cerrado tem um papel fundamental na preservação do bioma e que eles são extremamente relevantes para a preservação. Onde a gente tem uma ação descontrolada e o avanço do desmatamento, temos um rastro de destruição e de falta de água por conta do uso excessivo desse recurso.
No ano passado a gente sofreu muito, durante o trajeto, com a falta de água. Foi um problema sério. Só conseguimos pegar água nos grandes rios. Hoje já sabemos que na região da Chapada nós temos uma situação clara de desaparecimento de cursos d’água, que ficam sem secos durante os meses sem chuva. Isso dificultou muito.
Mas agora em 2023, nós vimos um Cerrado super verde, conservado e com água para todo o lado, mesmo no auge da seca, dentro do território dos Kalunga. Isso é um reflexo direto da organização comunitária dos quilombolas.
O Transcerrado propicia isso e quando você está no chão e conversa com as pessoas elas relatam que em um canto é difícil, mas onde tem mata preservada não é tanto. Os Kalunga tem um modo de vida e uma forma de se organizar que preserva mais de 150 mil hectares de um Cerrado lindo, preservado e com animais que a gente não via nas outras expedições, como os anfíbios e as aves. É muita água.
Jornalista no IPAM, lucas.itaborahy@ipam.org.br*