Mariangela Hungria, a cientista que recebeu o “Nobel da Agricultura”

8 de setembro de 2025 | Notícias

set 8, 2025 | Notícias

Anna Júlia Lopes*

Mariangela Hungria tinha apenas oito anos quando decidiu ser cientista. A inspiração veio da avó, professora de Ciências, que estimulava a curiosidade da neta com livros e pequenos experimentos no quintal. O presente mais marcante foi “Caçadores de Micróbios”, de Paul de Kruif. “Foi ela quem despertou em mim esse amor pela ciência. Ela sempre dizia que eu poderia ser o que quisesse”, lembra Hungria, em entrevista ao IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

Décadas depois, ela se tornaria a primeira brasileira a receber o World Food Prize (Prêmio Mundial da Alimentação, em inglês), conhecido como o “Nobel da Agricultura”. A premiação reconheceu sua dedicação de mais de 40 anos a uma área que mudou a forma como o Brasil cultiva alimentos: a pesquisa com microrganismos que substituem fertilizantes químicos, ajudando a reduzir custos e a proteger o meio ambiente.

Na prática, a contribuição de Hungria foi mostrar que os fertilizantes biológicos podem desempenhar o mesmo papel dos químicos, mas de maneira mais eficiente e sustentável. “As plantas precisam de nutrientes, assim como nós. O nitrogênio, por exemplo, é essencial. No caso do fertilizante químico, para produzi-lo é necessário quebrar a molécula de nitrogênio do ar com altas temperaturas e pressão, o que consome muita energia de petróleo. Além de caro, esse processo gera emissões de gases de efeito estufa”, explica.

Como não é um nutriente fornecido pela natureza, o nitrogênio químico é pouco aproveitado pelas plantas – cerca de metade se perde no ambiente. Parte escorre com a chuva e infiltra-se nos solos, atingindo lençóis freáticos, rios e lagos, onde pode desequilibrar ecossistemas aquáticos. “Esse processo de lixiviação acaba retirando oxigênio da água e matando peixes”, detalha Hungria.

Já o fertilizante biológico, continua a pesquisadora, é fruto de “milhões de anos de evolução”. As bactérias conseguem capturar o nitrogênio do ar e fornecê-lo para a planta de forma mais precisa, sem gastar energia fóssil e sem poluir rios e solos.

Com papel de destaque nas pesquisas de Hungria, estão os “inoculantes”. Também conhecidos como biofertilizantes, os inoculantes são preparados de bactérias que ajudam esses microrganismos a chegar ao campo. Misturados às sementes, os inoculantes associam-se às raízes e fornecem os nutrientes de que a planta precisa. “Nós conseguimos desenvolver uma enzima que captura o nitrogênio do ar e o entrega diretamente à planta. É uma pequena bactéria que faz o que o processo químico precisa de barris de petróleo para conseguir”, explica a pesquisadora, que atua na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) desde 1982.

Devido ao avanço das pesquisas com inoculantes, o Brasil se tornou líder mundial no uso de bioinsumos na agricultura. Segundo Hungria, no caso da produção de soja, só na última safra, os produtores deixaram de gastar cerca de 25 bilhões de dólares em fertilizantes importados. Do ponto de vista ambiental, o impacto é ainda mais significativo: cada quilo de nitrogênio químico produzido emite 10 kg de CO₂. “Ao substituir os químicos pelos biológicos, deixamos de emitir 250 milhões de toneladas de CO₂ só no caso da soja e só em uma safra”, afirma.

A cientista, que já orientou dezenas de jovens pesquisadores, defende hoje não apenas uma agricultura sustentável, mas regenerativa, capaz de garantir a produção em grande escala sem esgotar recursos naturais e “o mais amigável possível” com o meio ambiente.

Segundo a pesquisadora, foi uma “surpresa” ser nomeada para receber o World Food Prize. “Eu jamais esperaria ganhar esse prêmio”, afirma. O reconhecimento e a possibilidade de participação das mulheres na ciência foram temas centrais ao longo de sua trajetória – tanto profissional quanto pessoal. Incentivada por sua avó a seguir a carreira científica, ela explica que nem sempre foi fácil.

“Minha mãe era professora, muito bem educada, falava outros idiomas, mas, embora ela trabalhasse, ela era uma mulher da época dela. Eu tinha um irmão quatro anos mais velho. Se ele falasse que ia ser médico, minha mãe me falava: ‘Você pode ser enfermeira’. Se ele falasse que queria ser piloto de avião, ela falava: ‘Você pode ser aeromoça’. Eu perguntava: ‘Por que eu não posso ser médica ou pilota de avião?’”, conta a pesquisadora.

Nascida na capital São Paulo, Hungria cresceu em Itapetininga, no interior do Estado. Aos dez anos, voltou para a capital paulista, onde frequentou, com bolsa de estudos, um colégio de elite. Ela afirma que, na escola, também enfrentou resistência ao persistir na escolha de seguir uma carreira científica – principalmente no caso da agronomia, profissão até então ligada à imagem masculina.

“Quando eu falei que queria fazer agronomia, eles chamaram a minha mãe para falar o que tinha de errado comigo e que eu tinha que ir para medicina, porque não era possível a primeira aluna da turma querer fazer agronomia”, diz, aos risos. Mesmo com a desaprovação por parte dos familiares, Hungria seguiu na agronomia.

Depois da graduação, do mestrado, do doutorado e do pós-doutorado – além de passagens por universidades no exterior – e de mais de 40 anos na Embrapa realizando pesquisas relacionadas com as culturas de soja, Hungria foi a laureada da edição de 2025 do Prêmio Mundial da Alimentação, como um reconhecimento pela sua contribuição ao desenvolvimento de insumos biológicos para a agricultura.

Para ela, a conquista do prêmio é um reconhecimento coletivo. Embora ela faça questão de dividir os méritos com colegas de pesquisa, alunos e técnicos da Embrapa que, junto com ela, desafiaram décadas de desconfiança em relação aos biológicos, Hungria dedica o prêmio às mulheres. 

Na sua avaliação, as mulheres têm um papel fundamental na segurança alimentar – inclusive, mais importante do que o dos homens. O prêmio, ela diz, deve ser oferecido desde as mulheres que organizam a horta doméstica e entendem de ervas medicinais até as agrônomas e pesquisadoras da área.

“Nós temos desde a mulher que tem um profundo conhecimento de plantas medicinais até a cientista que nunca esperou e ganhou o World Food Prize.Somos fundamentais para a segurança alimentar, só que a sociedade precisa reconhecer não só aquela que ganhou o prêmio, precisa reconhecer todas da cadeia”, defende Hungria.

Aos 67 anos, ela pede para que as próximas gerações mantenham a coragem de acreditar no que fazem. “Na pesquisa, muitas vezes aparecem modismos ou oportunidades que parecem rentáveis. Eu sempre mantive a coerência. Dizia: ‘Não, o tempo que eu tenho é para dedicar ao que eu acredito’. Primeiro, você precisa acreditar no que faz. Eu nunca tive dúvidas sobre os biológicos. Depois, é claro, precisa pagar as contas, mas não pode se guiar apenas por dinheiro. Seja coerente com sua pesquisa”, aconselha

Da menina que lia sobre Pasteur com a avó à cientista premiada internacionalmente, Mariangela Hungria construiu uma trajetória que comprova como ciência, persistência e sensibilidade podem transformar a agricultura – e, com ela, o futuro da segurança alimentar no Brasil e no mundo.

Crédito da imagem: Divulgação/World Food Prize

*jornalista do IPAM, anna.rodrigues@ipam.org.br



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