Por Karina Custódio*
Com mais de 30 anos de trabalho e pesquisa na área ambiental, Suely Araújo é doutora em ciência política, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), além de representante da sociedade civil no Fundo Clima.
Esta entrevista foi publicada originalmente na Um Grau e Meio, newsletter com análises exclusivas sobre clima, meio ambiente e sociobiodiversidade, produzida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Você tem uma longa trajetória de atuação em torno das políticas ambientais, como foi sua entrada no debate sobre racismo ambiental?
A questão da justiça ambiental é uma coisa que me acompanha a vida toda, o envolvimento direto com a questão da luta contra o racismo ambiental. Eu mergulhei forte nesse ano ao passar a colaborar com a Coalizão da Adaptação Antirracista.
Estou tentando acompanhar o debate olhando para a questão da adaptação às mudanças do clima porque percebo que a questão de enfrentamento dos problemas das populações mais vulneráveis é uma lacuna importante no plano internacional e na esfera local. E o racismo ambiental para mim está muito ligado a isso, porque a crise climática é profundamente injusta entre os países e injusta internamente em cada país.
São os mais pobres que sofrem mais e, no caso brasileiro e de vários outros países, a pobreza tem cor, tem gênero. Quem despenca no morro e quem será afogado com o aumento do nível do mar em geral vai ser a população mais pobre. E a população mais pobre no nosso país é em grande parte negra, com muitas mulheres chefe de família. A crise tem tons de injustiça olhando a questão da etnicidade e a questão de gênero.
As políticas ambientais brasileiras incluem o combate ao racismo ambiental e implementação da justiça climática?
O governo atual está tentando incluir. Estão atualizando o Plano Clima, lançado em 2008. A lei que estabelece a política nacional sobre mudança do clima, de 2009 (Lei nº 12.187) prevê a criação desse Plano Nacional sobre Mudança do Clima. Que é como um plano guarda-chuva, porque ele dá diretrizes para outros planos, como: para o controle do desmatamento, para a transição energética, e tem uma vertente do plano clima que é adaptação.
O governo começou a atualização do Plano Clima exatamente pela adaptação. Já tem alguns meses que isso está sendo tocado, acho que a ideia é levar uma primeira versão da parte geral de adaptação para COP28. No processo de construção do plano de adaptação, o tema justiça climática está presente o tempo todo. Acho que o governo está considerando, mas, na prática, as medidas concretas continuam muito aquém do necessário.
Que problemas você percebe nesse processo?
O debate sobre as formas de financiamento. No próximo ano está prevista a captação de 10,4 bilhões de reais em títulos do Fundo do Clima. Estão chamando de títulos soberanos, emitidos pelo Governo. Esses títulos vão captar dinheiro no exterior para financiar a política climática. Esse recurso é o que a gente chama de recurso reembolsado. O que é isso? Ele vai poder ser emprestado, não doado. Como o governo está captando, tem que devolver onde ele tomou o dinheiro.
Essa captação será muito importante para o país, colocará provavelmente o Fundo Clima entre os maiores fundos de investimento climático no mundo. Mas falta debater como aumentar os recursos do Fundo do Clima e outras fontes de financiamento para poder trabalhar com adaptação à mudança do clima.
Porque esse dinheiro tem limitações, pode ajudar uma prefeitura a botar um ônibus elétrico, pode auxiliar um governo estadual a investir na melhoria da parte energia. Só que para a comunidade vulnerável que está lá despencando, como você vai ajudar só com o dinheiro emprestado? Eu não poderia beneficiar associações de moradores, não poderia contratar diretamente essas comunidades, porque eles não têm capacidade de empréstimo, de endividamento. Até mesmo governos municipais e estaduais, com débitos pendentes, muitas vezes não têm essa capacidade de endividamento.
Existem compromissos ambientais feitos pelo Brasil que envolvam o combate ao racismo ambiental, como titulação de territórios ou mitigação dos efeitos da mudança climática na população negra?
Internacionalmente existem os compromissos gerais da Convenção da Diversidade Biológica [CDB], relativos à ampliação de unidades de conservação. O Brasil é signatário, mas lá não tem compromissos específicos com determinadas populações, não existe o compromisso de criar unidades para abrigar comunidades tradicionais. Também assinamos a OIT 169 [Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho] que exige que os grandes empreendimentos que afetam essas comunidades realizem a consulta prévia livre e informada.
A Constituição protege expressamente povos e comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. Mas se existem problemas na demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas é ainda pior: cerca de 10% dos territórios quilombolas existentes são titulados.
Não existe um plano para ampliação da titulação?
O governo Lula está retomando isso, só que tem muita estrada pela frente. A maioria das comunidades não têm qualquer titulação. E a falta de titulação gera dificuldade em garantir seus direitos. Mas eu não acredito que isso se resolva em três anos de governo.
Quais você acha que serão consequências caso essas políticas de combate ao racismo ambiental não alcance o ritmo que estão as mudanças climáticas?
Nós vamos ter sérios problemas de saúde, de mortandade. A situação está muito ruim, a crise está posta, 2023 é provavelmente o ano mais quente da história, desde que se mede e começou a medir em 1850.
Esse calor está fazendo mal, está gerando problemas de saúde, quem realmente consegue se virar com esses problemas de saúde, ter um ar condicionado em casa, ar condicionado no trabalho, se é que é ar condicionado é solução, né? Ele mesmo já causa problemas, mas quem consegue se virar? Quem tem dinheiro.
Jornalista do IPAM*