Plantando as sementes da educação e da possibilidade na Vila da Barca, em Belém

13 de novembro de 2023 | Notícias

nov 13, 2023 | Notícias

Por Bibiana Alcântara Garrido*

“Afeto”, diz um dos lambe-lambe produzido nas oficinas da Barca Literária, colado nas paredes da vila (Reprodução)

Na baía do Guajará, toda sexta-feira à noite, um cantinho de leitura na Vila da Barca. Assim começou a Barca Literária, biblioteca comunitária itinerante que funciona há dois anos em uma das maiores favelas sobre palafitas da América Latina, na cidade sede da COP30 no Brasil, Belém.

Fundadora do projeto, Gisele Mendes trabalha como assistente social na área da saúde e, no contraturno, dedica-se às atividades na Vila da Barca. De uma sexta-feira no mês, a Barca Literária passou a preencher todas as noites da semana, às vezes, também os sábados de crianças e adolescentes que moram na comunidade.

“Sextou no cantinho da leitura”, atividade no início da Barca Literária (Foto: Arquivo/Reprodução)

São grupos de leitura, formações em liderança jovem e cidadania climática, contação de histórias, oficinas de arte e produção audiovisual e aulas de informática que envolvem, ao todo, 60 crianças e 20 jovens.

Ancestralidade

“É a partir da ancestralidade negra e indígena que a gente vem com o processo pedagógico. Nossos livros e estudos são voltados para essa ancestralidade, que vem nos ensinar a importância da preservação do território e do meio ambiente. De se entender como periférico, para fortalecer nossa identidade, entender de onde viemos e quem são nossos ancestrais”, diz Gisele.

Referências como Ailton Krenak, encantados e protetores da Amazônia são lembradas no ensino da leitura em conexão com o clima. “A gente fala da destruição humana da natureza, para as crianças e adolescentes entenderem como funcionam os resultados desse ‘progresso’ na nossa vida. Com isso, já observamos mudanças de comportamento, num processo de cidadania em que eles serão os multiplicadores”, acrescenta.

Em um mapeamento realizado por conta própria, a ONG Comissão Solidária da Vila da Barca identificou 3.800 pessoas morando na comunidade. A ideia era fazer uma campanha de doação de alimentos.

“A gente compreendeu que a área de palafitas era a mais vulnerável, então começamos a atuação pela Comissão Solidária”, conta a assistente social. Gisele preside a organização não governamental, que é de onde surgiu a Barca Literária.

Produção em oficina de lambe-lambe com crianças (Foto: Arquivo/Reprodução)

Entre as doações de alimentos, vieram os livros. “Chega na ponta da comunidade, na beira do rio, e as pessoas ficam encantadas quando recebem livros dentro da cesta básica. E, por incrível que pareça, a beira do rio é a parte mais vulnerável, porque Belém nasce de costas para o rio”.

Foi aí que as crianças da Vila da Barca se mobilizaram, relatando aos voluntários da ONG que não conseguiam, ou não sabiam, ler os livros doados.

“A partir daí, eu vejo como funciona a metodologia da biblioteca comunitária e a gente traz para a comunidade. Vemos a necessidade de um processo de formação de lideranças, também, para uma visão crítica do mundo.

Tudo debaixo da mesma lona, até ficar como funciona hoje a Barca Literária, de segunda à sexta, em uma casa alugada como nossa sede administrativa. Podia ficar só uma vez no mês, mas o território tem uma emergência muito grande”, lembra Gisele.

Trabalho coletivo, amorosidade e afetividade

“As palafitas são aterradas por lixo, um lixo neste rio em que foi colocada uma barragem. E essa barragem existe para o rio não chegar nas palafitas. Mas o lixo fica todo lá. É como se fosse para segurar o lixo mesmo. Então os meninos moram nesse lixo. Disso surge o debate sobre clima, cidadania climática, para que eles possam entender o contexto”.

A Vila da Barca, como muitas favelas do Brasil, fica ao lado de um dos condomínios mais caros de Belém, na orla do rio. Gisele conta que querem tirar a comunidade de lá, porque “a beira do rio é um lugar caro”. Mas as famílias da Vila da Barca não querem sair. Suas histórias são ali vividas há mais de 100 anos.

“Sempre que vem pessoas aqui, eu apresento: o centro histórico, o Ver-O-Peso, o Ver-O-Rio e a comunidade Vila da Barca, porque é a parte que está resistindo também”, comenta a assistente social.

O tráfico de drogas ainda se faz presente na comunidade. É por isso que, além das atividades educativas, a Barca Literária conta com uma psicóloga voluntária para atendimento socioemocional às crianças e adolescentes. Gisele também faz visitas mensais nas casas das famílias.

“A autoestima baixa aparece porque são criminalizados, devido ao território ser visto pela imagem do tráfico. Por isso, vamos trabalhando o empoderamento periférico, a valorização do trabalho coletivo, da amorosidade e da afetividade. É uma conquista muito grande quando a gente consegue plantar as sementes da educação e da possibilidade, para as pessoas que acham que não podem sair daquele lugar”.

Renda e liderança

Segundo Gisele, um dos objetivos da Barca Literária é ajudar a criar renda dentro da comunidade. Uma moradora da Vila da Barca é remunerada pelo projeto para fazer a limpeza da sede, enquanto sete adolescentes recebem auxílio financeiro para apoio em atividades dos grupos de leitura e na formação de jovens lideranças.

“O que a gente quer, de fato, é gerar renda dentro do território, porque o tráfico faz isso. A gente quer sustentabilidade, que a comunidade floresça, que daqui a 10 anos a gente tenha construído um bom legado para que eles possam dar sequência no processo educacional. Nós queremos formar lideranças para que elas permaneçam lideranças comunitárias”, afirma a fundadora.

Melhorias na infraestrutura, como a compra de uma sede, e nos equipamentos, estão entre os planos e sonhos para o futuro.

Formação de adolescentes lideranças protagonistas (Foto: Arquivo/Reprodução)

“Ainda estamos engatinhando na parte da informática, por exemplo, porque utilizamos um computador doado, um notebook comprado com recurso de um edital de premiação, e outro notebook é o instrutor que leva. Cada duas crianças dividem um computador, por isso estamos com seis crianças nessa atividade por enquanto”.

Em dois anos de Barca Literária, Gisele e uma equipe de oito pessoas voluntárias desejam muito mais.

“Meu sonho é ocupar esse território com cultura. A gente ocupa as bocas, propositalmente. Meu sonho é que essas crianças possam ter outras oportunidades. A gente roda com um processo educacional, de lona no chão, cada um carrega um pouco dos livros, para as crianças entenderem que aquele território também é delas. E que os adultos vejam situações positivas também”, aspira Gisele.

Clima em questão

A notícia da realização da 30a edição da COP (Conferência das Partes) em Belém trouxe ainda mais assunto para falar sobre o clima na Vila da Barca. O evento ocorrerá em 2025 e a comunidade se prepara para ocupar espaços desde já.

Ocupação na Feira do Livro 2023 (Reprodução)

Crianças e adolescentes da Vila da Barca também compuseram a programação dos Diálogos Amazônicos, dentro da Cúpula da Amazônia no Brasil, realizada em Belém entre agosto e setembro deste ano. Com atividades na UFPA (Universidade Federal do Pará), refletiram sobre como as mudanças climáticas se faziam presentes no dia a dia, em um intercâmbio com juventudes de outro bairro da cidade, Terra Firme.

Gisele compartilha que nem sempre a COP foi um tema conhecido dos jovens, e que as discussões climáticas ainda serão objeto de trabalho na Barca Literária.

“Quando chega a COP, que a gente desse lado territorial não concorda, trabalhamos para que eles possam entender nosso lado nessa história. Que efeito tem para a gente o que eles negociam, diretamente? Quando chegou a COP30 para Belém, eles dizem ‘é a copa que vem pra cá?’. Então tá muito distante”.

A proposta é que as crianças e adolescentes estejam preparados para falar e agir por si mesmos diante da realidade de suas comunidades, como jovens lideranças amazônidas. E a fundadora propõe uma reflexão sobre as ações pelo clima frente às populações que vivem na Amazônia:

“Eu acredito que é outro olhar que precisam ter da Amazônia, das pessoas que sobrevivem, de fato, no território. Outro olhar sobre nós, que somos um território palafitado, que gosta do rio, que toma banho nesse rio, mesmo estando ainda muito sujo por conta de situações de entendimento que as pessoas ainda não têm, porque foram excluídas de todo o processo de escolaridade. Ver o quanto é importante a educação inclusiva dentro do território. Que as pessoas entendam o quanto nossos ancestrais nos ensinaram. O que é a Amazônia e como ela sobrevive, mesmo diante de todos esses maus tratos?”.

Gisele Mendes: “Na beira do rio que amo tanto” (Foto: Arquivo/Reprodução)

*Jornalista de ciência no IPAM, bibiana.garrido@ipam.org.br



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Saiba mais em brasil.un.org/pt-br/sdgs.

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