Lays Ushirobira*
Engana-se quem pensa que apenas os países amazônicos podem tomar medidas para acabar com a grilagem, uma das principais causas do desmatamento da Amazônia. A comunidade internacional também tem um papel importante no combate à apropriação ilegal de terras públicas, como mostra o último episódio da série do Amazoniar sobre grilagem.
* Legendas em português e inglês estão disponíveis
Além de empreender esforços para prevenir o fomento à grilagem pelos mercados e investidores, a comunidade internacional pode contribuir com a implementação e o fortalecimento da rastreabilidade em cadeias de suprimento. Embora a pressão internacional por produtos livres de desmatamento esteja aumentando cada vez mais, ainda é preciso avançar muito. A extração de ouro – que está frequentemente conectada ao avanço da grilagem na região – é um grande exemplo de atividade que requer mais fiscalização e cooperação entre países.
Um estudo do Instituto Escolhas mostra que metade do ouro exportado pelo Brasil entre 2015 e 2020 apresentou indícios de ilegalidade, e 54% do ouro ilegal identificado veio da Amazônia. Além de vestígios de extração em terras indígenas e unidades de conservação, os pesquisadores encontraram títulos minerários fantasmas e outros sem informação sobre a origem do minério, como relata o Observatório da Mineração.
Nem tudo que reluz é ouro
A identificação da grilagem e dos produtos oriundos desse crime não é tarefa fácil. Grileiros vêm fraudando o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para se apropriar de terras que não lhes pertencem. Um estudo do Amazônia 2030, que contou com a participação de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), mostra que mais de 100 mil imóveis rurais registrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) apresentam sobreposições às florestas públicas não destinadas na região.
Em entrevista à equipe do Amazoniar, um ribeirinho que preferiu não ser identificado e por isso será mencionado como A., contou que teve dificuldade de entender o que é grilagem quando ouviu falar do termo pela primeira vez. “Na época, tinha muita gente comprando e vendendo terras, e perguntando se havia pessoas na comunidade para trabalhar cortando caminhos na mata. Eu pensava que aquelas terras pertenciam aos que estavam desmatando. Só depois se começou a comentar na comunidade que era uma forma de se apropriar de terras públicas”, disse.
Os impactos da prática ilegal, por outro lado, foram sentidos quase imediatamente. “Com a grilagem, muitos criminosos conseguem autorização para explorar minérios. No rio, é onde vemos o maior impacto: a água fica poluída, o uso de mercúrio vem contaminando o sangue dos moradores da comunidade. Os peixes, que são a base da nossa alimentação, estão adoecendo. Não podemos mais nos banhar no rio, porque dá alergia”, relata.
Para ele, a desunião entre as pessoas da comunidade também é um dos impactos da grilagem. “Alguns vão trabalhar nos garimpos ilegais por não ter outra alternativa. A cultura do ouro é muito forte na região e é muito difícil mudar a política de renda. Muitas pessoas acreditam que só é possível sobreviver com o trabalho com ouro”, explica, defendendo a importância de incentivar o extrativismo sustentável para geração de renda das famílias do assentamento onde vive.
Para poder avançar na rastreabilidade das cadeias de suprimentos, os pesquisadores do IPAM destacam a criação de sistemas integrados de informações, como plataformas online que vinculem resultados de pesquisas científicas e análises criteriosas sobre os impactos de decisões de mercado e de investimentos sobre o desmatamento na Amazônia.
União e resistência contra a grilagem
O combate à grilagem é uma história de resistência constante. Ao longo das últimas décadas, a comunidade ribeirinha de A. acumulou muitas vitórias, sempre seguidas de novos desafios.
Em 2005, ele se juntou a outros moradores para criar uma associação. “Começamos a fazer um movimento organizado, com discussões e ações conjuntas para denunciar criminosos e tentar nos proteger da grilagem”, conta. A partir dessa união e com assessoria jurídica, o grupo conseguiu anular o título falso de propriedade de uma empresa madeireira que estava operando no território desde a década de 1970 e constantemente ameaçava os moradores de morte.
Outra conquista da associação foi a autodemarcação das terras. “Fizemos uma assembleia para entender se a comunidade estava de acordo com a proposta e depois partimos para a prática. Foram dois anos para concluir o processo e teve envolvimento de cerca de 90 pessoas, que participaram de forma direta ou indireta”, diz.
No entanto, mesmo com a autodemarcação, as terras voltaram a ser invadidas por grileiros nos últimos anos diante do desmonte ambiental e da pandemia. “Aumentou o número de invasores no território. O ouro valorizou, o que atraiu muitos garimpeiros. Como as escolas estavam fechadas, os jovens foram trabalhar nos garimpos e começaram a cortar caminho novamente. A grilagem ganhou força nesse período e nós fomos muito prejudicados.”
Ele conta que algo muito importante para a resistência da comunidade foi a aliança com indígenas com quem compartilhavam o território mas não tinham proximidade antigamente. “Antes, nossos antepassados eram atacados por indígenas e havia uma barreira entre nós. A gente já era educado a não gostar deles, isso é culpa do sistema colonial”, conta. “É a primeira aproximação com povos indígenas. A gente estava diante de um inimigo comum e juntos ficamos mais resistentes. Quanto mais cabeças pensando juntas, melhor.”
Essa experiência de aliança local evidencia a importância de esforços coletivos coordenados. Também pode servir de exemplo para a cooperação internacional, especialmente no que toca à realização de consultas de comunidades diretamente afetadas para uma formulação mais assertiva de políticas e acordos internacionais que auxiliem no combate ao desmatamento. Em 2022, o IPAM, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Fern realizaram uma consulta com representantes de organizações e coletivos do Brasil, da Argentina e do Paraguai sobre o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia – o primeiro do bloco sul americano a incluir um capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável.
A iniciativa concluiu que essas comunidades não tiveram suas vozes ouvidas no processo de negociação e elaboração do acordo, embora o tratado afete suas vidas, terras e segurança. “As comunidades devem participar integralmente da negociação dos acordos comerciais. [Se elas participassem da negociação] o acordo resultante teria maior probabilidade de ser fundamentado em princípios que respeitem os direitos humanos e a proteção ambiental”, destacam as organizações num policy brief que reúne os principais temas abordados durante a consulta.
Sobre o Amazoniar
O Amazoniar é uma iniciativa do IPAM para promover um diálogo global sobre a Amazônia e sua importância para as relações do Brasil com o mundo. Nos ciclos anteriores, foram organizados diálogos sobre as relações comerciais entre Brasil e Europa; o papel dos povos indígenas no desenvolvimento sustentável da região e sua contribuição para a ciência e a cultura; e o engajamento da juventude pela floresta e seus povos nas eleições de 2022.
Com a proposta de levar a Amazônia para além de suas fronteiras, o Amazoniar já realizou projetos especiais, como um concurso de fotografia, cujas obras selecionadas foram expostas nas ruas de Glasgow, na Escócia, durante a COP 26; uma série de curtas que compôs a exposição “Fruturos – Amazônia do Amanhã”, do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro; além das cartilhas Cenários possíveis para a Amazônia no contexto das eleições brasileiras de 2022 e Soluções para o desmatamento na Amazônia. A iniciativa também produziu uma série de entrevistas com representantes de comunidades tradicionais durante as negociações do Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia.
Para fazer parte do diálogo global sobre a Amazônia, inscreva-se na newsletter do Amazoniar.
*Jornalista e consultora de comunicação do IPAM